Resistência quilombola na enchente em Porto Alegre

Resistência quilombola na enchente em Porto Alegre

texto e fotos por Alass Derivas | Deriva Jornalismo para Agência Pública

A Zona Norte de Porto Alegre é uma das regiões que mais sofreu com a enchente histórica que alaga parte da cidade desde o começo de maio. Nos últimos dias, a água chegou a baixar, no entanto, com a volta da chuvas fortes no estado desde sexta-feira (10), não há previsão exata de quando muitas pessoas poderão voltar às suas casas, mesmo que para avaliar os danos.

Dentro do Bairro Sarandi, está a Comunidade Sete de Setembro e a Vila Respeito, que teve boa parte das suas ruas alagadas, com diversas casas ficando submersas. O Quilombo dos Machado, um dos 11 quilombos urbanos de Porto Alegre, constituído por 263 famílias, possui casas distribuídas nestas duas comunidades. Segundo Rogério Machado, o Jamaica, liderança do Quilombo, 40% das famílias tiveram suas moradias atingidas pelas águas. A seguir, as fotos mostram um recorte de como o Quilombo dos Machado foi afetado e como está sendo um local de amparo, apoio e resistência para quilombolas e inúmeras pessoas da região.

Estas fotos do sábado (12) mostram a situação da Vila Respeito, onde muitas casas do Quilombo estão localizadas. O cenário ainda é desolador. Casas submersas, móveis destruídos, pessoas abrigadas em moradas de amigos ou de familiares sem saberem como será a volta para casa.

No domingo (5), enquanto o nível d’água ainda subia e não se sabia até onde poderia chegar, moradores da Vila Respeito corriam para salvar o que podiam.

Seis dias depois, o nível da água baixou, liberando o acesso a algumas casas, como a do quilombola Luismar Muria, 46 anos, pedreiro.

Ao entrarmos na sua casa, Luis diz não saber ainda o que será possível aproveitar dos móveis e principalmente das roupas.

Luismar, sua esposa Daiana Patrícia, 36 anos, que trabalha com reciclagem, e as filhas Kauane Muria, 19, e Raiana Muria, 14, estão ficando de improviso na sala da mãe de Luis, dona Lucia Muria, de 71 anos e seu Edemir, Santos, 72.

Dona Lucia é a anciã do Quilombo dos Machado. Tem 24 netos e bisnetos, muitos morando naquela região. Desde 2013 ocupa esta casa na Vila Respeito. Naquele ano, fez suas mudança justamente porque a rua que morava, há alguns metros ali, mais perto do valão, alagava. A quilombola, que ainda trabalha como faxineira, conta que nunca viu a água chegar onde chegou desta vez. “São vários filhos, sobrinhos e netos que estão desabrigados, ficando na casa de parentes, como aqui em casa”. Fazia apenas uma hora que havia voltado a energia elétrica, depois de quase uma semana sem.

Dona Lúcia, as netas, Luismar, Daiana (ao centro, sorrindo) e diversas outras pessoas do Quilombo, da Vila Respeito, desabrigadas ou que estão precisando de algum suporte estão tendo como base de apoio, nestes últimos dias, a sede do Quilombo dos Machado.

O território, certificado na Fundação Palmares desde 2014 e na luta para garantir sua titulação, está com forte organização comunitária, uma equipe de pessoas, quilombolas, vizinhos e apoiadores, sob a orientação de Rogério Machado, o Jamaica, 43 anos, educador social, professor de capoeira, pai de santo, e de Vanda Tamires da Silva, a Tamy, 34 anos.

Há mais de uma semana, o território é referência no acolhimento para as mais diversas demandas emergenciais das famílias quilombolas, desabrigados da Vila Respeito e de diversas outras vilas da Região Norte, como Dique, Nazaré, União, Nova Brasília. Distribui marmitas, cesta básicas, colchões, produtos de limpeza, água potável. E busca, de certa forma, orientar quem está perdido neste caos dos últimos dias, com quase nenhum apoio, suporte ou informação da Prefeitura de Porto Alegre ou do Governo do Estado do Rio Grande do Sul.

“O Quilombo está cumprindo uma função de existência, resistência e sobrevivência”, conta Jamaica. “Estamos fazendo esse esforço de nos apoiarmos enquanto irmãos, família. É o se aquilombar. A gente, pela gente, com a gente, porque é difícil de vir alguma coisa de órgãos nem digo competentes, mas incompetentes”, defende.

O telefone de Jamaica não para de tocar, notificações de ligações e mensagens. São pedido de informações, de ajuda ou pessoas voluntárias, autônomas e de organizações, coletivos articulando doações para o Quilombo. A todo momento chegam carros deixando cobertores, água potável, marmitas, comidas, remédios, lonas, capa de chuva, etc. O fluxo de doações é grande, no entanto a demanda também.

O esgotamento é nítido no rosto de Jamaica, Tamy e daquelas mulheres e homens que estão juntos na linha de frente. Já são mais de sete dias de constante atenção, pressão e atendimento a diversas pessoas em situações extremas de vulnerabilidade. Neste momento, lidam com a gerência de recebimento e distribuição de doações. Mas, há alguns dias atrás, lidavam com a pressão da possibilidade da enchente chegar à sede do Quilombo.

No domingo passado (5), informações em grupos de Whatsapp, agentes públicos de trânsito e policias provocaram um alerta falso de que a represa do bairro Sarandi teve seu dique rompido. A orientação urgente da Prefeitura de Porto Alegre era de evacuação da Zona Norte de Porto Alegre, o que causou pânico na comunidade.

Dezenas de carros de apoiadores chegaram ao Quilombo, após um chamado de urgência, para ajudar em uma evacuação emergencial. Após alguns minutos de choro, correria, uma nova informação: a água extravasou o dique, não rompeu. A enchente não atingiu a sede do Quilombo. Neste momento, o nível de pressão de Jamaica foi às alturas, pela necessidade ou não de orientar uma evacuação do território, que é território de resistência. Na foto, momento em que Jamaica fala com os apoiadores que atenderam o chamado de urgência.

“A jogada tática que estão fazendo é dizer para evacuarmos”, avalia. “Fizemos a resistência e a persistência. E estão de olho na gente, dizendo que somos loucos, passando por cima das regras. Em um Quilombo urbano a gente vê direitinho como a especulação imobiliária faz, como tem acontecido no Quilombo Kédi recentemente, pelo espaço físico que tem, que vale bastante para os especuladores. No Quilombo dos Machado não é diferente. A gente vê um grande assédio na comunidade, de empresas como o Big [hipermercado], aeroporto [Fraport], pessoal de classe média alta colado na gente”.

Jamaica relembra o caso recente, no começo da enchente, final de abril, em que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) removeu, devido ao risco, o acampamento do povo mbya guarani Pekuruty da beira da BR-290 para uma escola municipal de Eldorado do Sul. Após os indígenas saírem, o DNIT destruiu as casas e a escola da aldeia. O órgão, ligado ao Governo Federal, disputava a área com os indígenas para duplicação da rodovia. “Isso que fizeram com os guaranis é o que fazem há 524 anos”, afirma.

Na noite de sábado (11), o Prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, em entrevista ao Jornal Nacional, culpou as vítimas da enchente: “Estas pessoas nunca deveriam morar onde moram”. Jamaica está esperto do que tem por trás desse discurso.

“Escutei que em regiões, como a Vila Brasília, estão isolando a área para avaliar riscos antes das pessoas voltarem. Além de sofrer com a chuva e com o alagamento, você não vai poder entrar na sua casa”. 

E para onde vão estas pessoas se não podem voltar para casa?

“É assim que fazem, é assim que fizeram com nosso povo. Como foi feito com quem mora hoje na Restinga, removida da antiga Ilhota. Só vão tirando dos lugares de origem, onde tem sua ancestralidade, e mandando para onde eles bem querem. O Estado faz isso, sempre fez isso. Enquanto povo preto, enquanto povo de periferia, temos que estar sempre firmado para poder se segurar e segurar quem está com a gente”.

O Quilombo permaneceu, firme. E hoje é território de fortalecimento de outros Quilombos, de ocupações, de desabrigados. De diversas pessoas que estão sem perspectiva neste momento.

Segundo Jamaica, tem dias que o Quilombo dos Machado é base de distribuição de 3 mil marmitas.

Antônio Costa, 40, é morador da Vila Respeito e possui uma lanchonete que vendia salgados na frente de empresas do bairro Sarandi. Sua casa não alagou, mas a casa de suas duas funcionárias sim e a de seus clientes. Está sem perspectiva de quando voltará a trabalhar. Antônio passou a semana buscando marmita todos os dias no almoço para levar, de moto, até as duas funcionárias, que estão abrigadas na casa de uma familiar no município de Alvorada.

Após vários dias sem água, esta é a condição do líquido que sai das torneiras do Quilombo dos Machado.

O abastecimento de água potável virou uma crise durante a enchente, em falta nos mercados e distribuidora, um dos itens prioritários de doação. A cidade chegou a ficar três dias com 70% das casas sem ter água encanada.

As doações que chegam estão suprindo as mais diversas demandas, sendo escoadas para diversos territórios.

Para se ter ideia, há distribuição de marmitas e água no almoço e na janta de barco para algumas pessoas ilhadas na Vila Respeito. Ação garantida pelos atuais barqueiros, Artemis da Silva, 40, e por Richard Schmitt, 31 anos, moradores da Comunidade Sete de Setembro, parte da equipe do Quilombo dos Machado.

“A gente vai fazendo o máximo que pode. Me pedem pix. Pix não tenho, mas aqui temos comida, um colchão, roupa. E assim vamos se ajudando. Sentimento de família mesmo”, conta Richard, que fez aniversário no dia 6 de maio. Celebrou com alguns amigos, na sede do Quilombo, entre uma demanda e outra.

A autoorganização quilombola está proporcionando este tipo de ação, de suprir as demandas de quem está isolado, onde o Estado não chega. A ronda de barco serve até como transporte público. Na entrega do almoço de sábado (12), serviu Moreno, há dias isolado no segundo andar da sua casa. Ao invés de receber a marmita rotineira, pegou uma carona para ir visitar sua filha em Viamão, município vizinho.

Hoje o Quilombo dá conta de demandas emergenciais, que diz respeito à alimentação imediata, roupas secas, água potável.

A comunidade tem consciência que os desafios estão só começando. Quando a água baixar, será possível ver o tamanho do estrago dentro das casas. A reconstrução, ainda sem previsão de quando começará a acontecer, levará tempo e precisará que a força tarefa e autoorganização continue. “Sempre foi a função do Quilombo ter o fortalecimento de si mesmo. É um trabalho que a gente já faz, um ajudar o outro, vamos até o fim”, afirma Jamaica.

Abaixo, mais alguns registros do estrago na Quilombo dos Machado, na Vila Respeito e da resistência de autoorganização nesta crise sem precedentes. Para contribuir com a campanha de arrecadação do quilombo, envie um pix para quilombodosmachado@gmail.com.











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