Roubos, água gelada, agressões nas remoções da pop rua (11-06-2021)

Roubos, água gelada, agressões nas remoções da pop rua (11-06-2021)

Por causa de um desentendimento familiar, Cléber* deixou sua casa em Santa Maria e veio para Porto Alegre, onde entrou em situação de rua. Na noite do dia 5 de maio, uma das primeiras ao relento na cidade, dormindo embaixo do Viaduto da Conceição, foi surpreendido com a chegada da Brigada Militar. “Jogaram um galão de água em cima de mim e de outros que estavam ali, dizendo que era proibido dormir naquele lugar. Molhou minhas roupas, minhas cobertas. Já estava frio, passamos mais frio. Uma sacanagem, por que isso?” O caso de Cléber não é o único. Embora o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) tenha conseguido na Justiça, com uma ação civil pública junto com a Defensoria Pública da União, ainda em 2020, a proibição, através de liminar, das remoções durante a Pandemia, a Brigada Militar e os órgãos da Prefeitura de Porto Alegre seguem enxotando as pessoas do centro da cidade. Em muitos casos, molhando roupas, cobertores ou até mesmo roubando os poucos pertences, inclusive documentos – o que tem dificultado a vacinação contra o Covid-19 dessa população.

Pelo fim dessa situação, pessoas em situação de rua e apoiadores protestaram em frente a Prefeitura de Porto Alegre na tarde da sexta-feira passada (11). O ato também denunciou a perseguição do Prefeito Sebastião Melo aos carrinheiros, que fazem seu sustento recolhendo resíduos pelas ruas. A gestão municipal está proibindo a circulação e multando o dono dos carrinhos, sem apresentar nenhuma alternativa de sustento a essas pessoas. Com cartazes, tambores e uma caixa de som, dezenas de pessoas pediam o que parece óbvio: serem vistas, respeitadas em uma sociedade que ignora e desumaniza as pessoas em situação de rua.

“Os carrinheiros estão sendo reprimidos, através de multas, por uma lei criada pelo Melo quando era vereador. A gente quer saber qual alternativa de trabalho será apresentada pela Prefeitura para essas pessoas sobreviverem”, reivindica Veridiana Farias, educadora social e apoiadora do MNPR. “Usam nossa imagem em propagandas de arrecadação, em outdoor em cima do viaduto, mas, embaixo do viaduto, o próprio governo vai lá e tira nossas roupas, nossos documentos, isso aí é roubo”, denuncia Édisson Campos, coordenador nacional do Movimento Nacional da População de Rua. “O pessoal em situação de rua está sendo vacinado agora. Aí passa o DMLU, a SMAM e retiram o pouco que as pessoas tem, inclusive os documentos. Isso não é política que se apresente para uma cidade”, completa Veridiana.

Édisson e outros representantes do Movimento Nacional da População de Rua foram recebidos na Prefeitura pelo secretariado do prefeito. A exigência do fim das remoções foi apresentada através de uma carta, que traz, em destaque, o questionamento direto a Sebastião Melo:

“Como o senhor se sentiria se estivesse em situação de rua e o caminhão do lixo passasse para lhe retirar os únicos pertences que lhes sobraram para ter um mínimo de dignidade?”

O documento pode ser lido na íntegra no final desse texto.

Como falado no começo do texto, o caso do Cléber não é o único. Veja os depoimentos anônimos escutados pelo Deriva Jornalismo durante o protesto:

“Há dois dias atrás no Viaduto da Conceição a Polícia chegou jogando balde de água na cara das pessoas, dando coice como se fosse bicho, chamando a gente de tudo. Não deveria acontecer isso. Estamos ali muitas vezes não é porque a gente quer, deitado, passando frio”;

“Quando eu morava no viaduto, mandaram tudo embora, nos tiraram dali, tinha até mulher com filho. Sem pedir desculpa, sem nada. Ao invés de eles irem atrás de traficante, eles vem atrás da população de rua. Eu odeio a polícia”;

“No meu ex-companheiro, a Polícia deu de fio de telefone no Parque Harmonia”;

“Passei um tempo no coreto do Colégio Julinho. Ali durante quatro noites seguidas sofremos abordagem da polícia em que fomos agredidos com insultos, palavras e gestos, abuso de autoridade. Agora tem um Capitão naquela região que está tocando todo mundo para cima na madrugada. Usam de água gelada. De um mês para cá estão intimidando homem, mulher, famílias que estão na rua por causa do caos que está essa nossa cidade”.

O gabinete do Prefeito Sebastião Melo se comprometeu em suspender qualquer remoção até a Reunião da Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana (Cedecondh) da Câmara dos Vereadores, na terça, dia 15, onde o tema voltará a ser tratado. Detalhe, como já dito: as remoções já deveriam estar suspensas por ordem judicial. Outro detalhe: no dia 08 de junho aconteceu uma Audiência Pública sobre as remoções dentro da Comissão, com a presença de vereadores e pessoas em situação de rua. Os órgãos da prefeitura foram convidados, acusaram o recebimento do ofício e não se fizeram presentes, o que causou indignação dos participantes. Para a reunião do dia 15, os órgãos da Prefeitura serão, desta vez, convocados pela Cedecondh a participar.

Durante a pandemia, o número de pessoas em situação de rua aumentou. Para se ter ideia, ao lado da Prefeitura, na entrada do Banco do Brasil, região de destaque da cidade, 41 famílias estão vivendo sob a lona, lutando pelo seu direito à moradia.
“Se todo mundo que está na rua quiser ser acolhido em algum serviço, não tem vaga, Prefeito. E nem todo mundo quer ir para um espaço da assistência. Tem que ter moradia e geração de renda”, insistiu Veridiana no microfone.

Após saírem da reunião e passar o informe para os presentes no Paço Municipal, Édisson destacou a importância da articulação de apoiadores e pessoas em situação de rua: “Importante passarmos a conversar com as pessoas dentro dos serviços, como nos Centro Pop, explicar o que está acontecendo, porque o intuito é lutar e resistir”.

O ato contou com a presença de quilombolas da família Machado e da Frente Quilombola, que organizaram doações de roupas e promoveram um lanche, com café, bolo e cachorro quente. Jamaica Machado, liderança do Quilombo dos Machado, explica que ação é solidariedade direta e também a luta cotidiana com foco na igualdade. “O que estamos fazendo aqui é nossa luta cotidiana. São 521 anos de genocídio do nosso povo, de puro esquecimento do nosso povo, é só vermos como somos tratados em órgãos como a Prefeitura. Na rua, na periferia, nas aldeias, nos quilombos nosso povo vem sendo massacrado. Por isso que, quando a população de rua se manifestar, nós do Quilombo dos Machado, da Frente Quilombola vamos estar. Pela relação humana, de luta e de sobrevivência do nosso povo”.

A ver os desdobramentos a partir da Reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Vereadores, nesta terça, dia 15.

Leia a carta na íntegra e abaixo dela a galeria de fotos do protesto.

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* Cléber é um nome fícticio devido o risco de retaliação pelos depoimentos sensíveis.

Carta do Movimento Nacional da População de Rua ao Prefeito Sebastião Melo

Porto Alegre, 11 de junho de 2021.

Sr. Prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo, através desse documento viemos diretamente começar uma conversa, contando com a sua atenção, para nós, cidadãos da cidade de Porto Alegre, em situação de Rua e de extrema vulnerabilidade social, assim lhes perguntamos:

Como o senhor se sentiria se estivesse em situação de rua e o caminhão do lixo passasse para lhe retirar os únicos pertences que lhes sobraram para ter um mínimo de dignidade?”

Dessa forma, com essa pergunta e muitas outras, gostaríamos de conversar amigavelmente, com o Sr. Prefeito dessa cidade, que deve ser de todos e de todas Porto Alegrenses e até de pessoas que, como o Senhor, vem de outros estados, de outros municípios e passam a viver aqui.

Prefeito Sebastião Melo, o senhor sabia que se TODAS as pessoas em situação de rua quisessem ir para algum espaço de acolhimento da Assistência Social não haveria vagas suficientes? O senhor sabia que, com o advento da pandemia e com a crise sanitária instalada no mundo, muitas famílias e indivíduos estão ficando sem trabalho, impedidos de pagarem seus aluguéis e indo morar nas ruas? O senhor sabia que se apegar na visão equivocada de que as pessoas em situação de rua, estão na rua porque querem ou porque usam drogas pode só reforçar preconceitos? O senhor sabia que a maioria das pessoas que estão em situação de Rua no Brasil é negra ou parda? Sabe que esse público tem escolaridade baixa e que, por isso, muitas vezes, lhe sobra o trabalho precário, mas, não menos importante, como a catação de materiais recicláveis para sobreviver? O senhor sabe que os programas de habitação que existem, como os de aluguéis sociais, moradia primeiro, etc, ainda são muito frágeis, insuficientes e inconsistentes? Os mesmos tem prazo ínfimo para possibilitar que as pessoas possam dar conta de tudo que uma casa exige e que a moradia não pode vir sem trabalho e renda? O senhor sabia que as equipes de abordagem social, da Fundação de Assistência Social e Cidadania, fazem um trabalho de acompanhamento a essas pessoas que estão nas ruas, junto com as equipes de Consultórios na Rua, que acompanham questões de saúde, de tuberculose e outras doenças importantes? Sabia que esse acompanhamento exige dessas equipes um trabalho de investir no vínculo, na escuta a essas pessoas, para ir oferecendo o que é possível? Sabia que isso não ocorre de um dia para o outro, que leva tempo, que exige confecção de documentos, inclusão em serviços de saúde, tratamentos diversos, com medicações que as equipes ajudam essas pessoas a pegarem nas farmácias distritais, depois de terem sido acompanhadas em consultas? Sabia que morrem pessoas de frio TODOS os invernos nas ruas, e que oferecer um cobertor através das equipes de abordagem noturna, quando a pessoa ainda não decidiu ir para um acolhimento, pode salvar uma vida? Sabe que essa decisão de ir para um acolhimento, muitas vezes, não acontece por vários motivos? Porque as pessoas em situação de Rua também têm seus cachorros, seus carrinhos e que não tem vaga para todo mundo? O senhor sabia que enquanto as equipes de saúde e de assistência social da prefeitura, fazem esse atendimento e conhecem a dinâmica das pessoas que vivem em situação de Rua, lhes ajudam a confeccionar documentos, lhes doam agasalhos e cobertores para que não morram de frio, até que possam aceitar ir a um acolhimento, outras equipes, da mesma prefeitura, recebem ordens para passar e retirar os pertences das mesmas pessoas atendidas? O Senhor acha que isso realmente é uma solução? O senhor sabia que existem muitos casos crônicos de pessoas com diversos transtornos de saúde mental, que a família abandonou e foram parar nas ruas? O senhor sabe o quanto, muitas vezes, é difícil fazer vínculos com essas pessoas e conseguir encaminhá-las para algum lugar? Sabia que isso pode, por vezes, durar anos? Sabe que não há vagas suficientes para elas em residenciais inclusivos de saúde mental? Sabe que, muitas vezes, as equipes levam muito tempo para descobrir algo sobre a vida e a história dessas pessoas, que não possuem documentos e algumas delas nem sabem dizer de onde elas vieram? O senhor sabe que, diante de tudo isso, o uso de álcool e\ou outras drogas, vira a “cereja do bolo?” Queremos lembrar, Sr. Prefeito Sebastião Melo, que começou o processo de vacinação contra a COVID 19, das pessoas em situação de Rua em Porto Alegre e que retirar pertences, principalmente, agora, pelas secretarias das remoções, pode ser retirar dessas pessoas as carteirinhas de vacinação, comprometendo a imunização, assim como, ficam comprometidos diversos tratamentos, de várias doenças com tais práticas. Sabia Sr. Prefeito, que existe uma Ação ajuizada pela Defensoria Pública da União, com liminar concedida pela Justiça Federal, ainda em vigência, que prevê que protocolos obrigatórios precisam ser seguidos, entre eles a garantia de alternativas para a alocação das pessoas e das famílias em condições minimamente dignas, antes de qualquer remoção? AÇÃO CIVIL PÚBLICA N° 5053278522019.404.7100/RS. Sabia que tais remoções, além de serem desumanas, estão afrontando diretamente uma decisão judicial, ao não se cumprirem as determinações e protocolos presentes na decisão para as abordagens às pessoas em situação de rua?

Através de todos esses questionamentos, Senhor prefeito, porque nada melhor do que pensarmos juntos nas soluções, queremos abrir diálogo com sua gestão. Também informar que ainda temos um Comitê Municipal de Acompanhamento e de Monitoramento das Políticas Públicas para a População em Situação de Rua, fruto do diálogo com a gestão, da qual o senhor fazia parte, quando o prefeito era o senhor José Fortunati. Ali, estamos dispostos a construir juntos as possibilidades. No comitê, estão representantes das pessoas que já viveram em situação de Rua e que conseguiram superar essa situação. Elas têm experiências importantes a compartilhar com a gestão, assim como, as equipes que trabalham com essa população. Naquele comitê, ligado à pasta de direitos humanos, tem vagas para representação dessas outras secretarias, que precisam entender como achar solução para não realizarem o desserviço de jogar no lixo os pertences que são frutos dos próprios recursos públicos que a prefeitura oferece. Mais importante que isso, precisam entender, assim como a sociedade e as gestões, que as pessoas em situação de rua, não podem ser tratadas como se fossem lixo, humilhadas, quando não há solução e viabilidade de políticas públicas integrais para todas elas. Sem mais, nos colocamos à disposição para o diálogo e a busca de soluções.

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