Publicado originalmente no Sul 21
Airton Krenak, da etnia Krenak (assolada pela lama tóxica no Rio Doce, maior crime socioambiental da história, das empresas impunes Samarco/Vale do Rio Doce), certa feita, em uma aula inaugural da UFRGS em 2017, comentou sobre o fato da luta pela demarcação de terras indígenas ser uma medida de garantia para os povos, mas ainda assim ser uma medida colonial, por legitimar a demarcação, o limite, a fronteira, referenciais territoriais do homem branco. Essa discussão complexa parece tão distante no contexto em que vivemos no Brasil, em que, há anos, as demarcações já não vinham acontecendo como reivindicadas e que, atualmente, com o presidente Jair Bolsonaro (PSL), o cenário já piorou, no nível de demarcações já feitas serem revistas e terras indígenas serem invadidas por pistoleiros e madeireiros.
No entanto, a fala do Ailton Krenak me despertou um sentimento de que, às vezes, a luta mais progressista pode trazer uma essência colonialista, tanto no âmbito individual quanto coletivo (partidário, sindical). A provocação de Airton coloca em questão o nosso repertório e postura de atuação nas lutas, principalmente nas de apoio aos povos originários. Essa sensação me voltou neste começo de ano, após o novo governo assumir, ao ver o crescimento nas redes sociais do apoio dado aos povos indígenas após as invasões de territórios no Pará, no Maranhão e, aqui em Porto Alegre, do suporte que vem sendo dado aos guaranis mbya da Retomada da Fazenda da Ponta do Arado no Belém Novo.
No domingo dia 13, aconteceu a vigília na Praça do Belém Novo em solidariedade aos guaranis após serem atacados, na madrugada de quinta para sexta, por tiros disparados por dois homens encapuzados. Segundo os indígenas, os atiradores seriam seguranças da Zeladoria CFV, que presta serviço a Arados Empreendimentos Imobiliários, megaempreendimento que disputa o território com os mbya.
Nesta quarta, dia 16, outro ato, puxado por lideranças indígenas de aldeias de Porto Alegre e região e que teve uma caminhada do Incra até o Ministério Público Federal, também denunciou o ataque e, ainda, repudiou as medidas do governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de transferência de responsabilidades da Funai para o Ministério da Agricultura, inclusive a da demarcação de terras. Em ambos os atos, bandeiras, faixas e falas de coletivos políticos, independentes ou vinculados a partidos.
Na vigília, vi pessoas com camisetas de outras lutas, inclusive a de “Lula Livre”. Bolsonaro é a barbárie para os povos originários, isso é indiscutível e precisa ser combatido. Mas é preciso lembrar a nulidade do do governo petista na garantia dos territórios indígenas e de novas demarcações. Pelo contrário, inclusive pondo em risco vidas, como no caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Após o ataque aos indígenas da Ponta do Arado, apoiadores estão se revezando para pernoitar na retomada. Decisão tomada pelos guaranis. Na quarta (16), a Brigada Militar foi chamada pelos seguranças da Zeladoria CFV para intervir e questionar a presença dos brancos no território. Os policiais atenderam o chamado, ficharam os dois apoiadores presentes, ameaçaram de os levarem para fazer uma ocorrência na 21º Delegacia de Polícia, que está acompanhando o caso. Depois de muito papo, de os apoiadores garantirem que era um direito estar ali, de informarem que estavam amparados por uma rede de apoio, os policiais foram embora. Durante a conversa, um investigador à paisana perguntou se os dois apoiadores faziam parte de algum coletivo político, como por exemplo o CPERS (sindicato dos professores estaduais do Rio Grande do Sul). Esta pergunta é emblemática.
É preciso dizer que repudio toda e qualquer perseguição política, seja da polícia, seja de grupos fascistas reais e virtuais, aos coletivos e partidos que apoiam os guaranis. Não é isso que guia minha reflexão, mas o cuidado de não nos apropriarmos e de garantirmos o protagonismo dos indígenas na luta. Também considero importante o apoio dado através das articulações, solidariedade, doações e presença corporal. O que questiono é a necessidade de demarcar a presença dos coletivos, com camisetas, bandeiras e faixas, sempre com os logos dos respectivos grupos. Não podemos nos permitir usar a luta dos povos originários para angariar visibilidade política e projeção.
No âmbito individual, é preciso estarmos sempre atentos no que diz respeito ao nosso apoio à luta, neste momento, dos mbya guaranis na Ponta do Arado ou à luta indígena de forma geral. Ao risco constante de assumirmos uma conduta colonizadora ou apropriadora da luta. É preciso lembrar, nos autolembrar, a todo instante, que o protagonismo da luta é dos guaranis. Estamos apoiando. É necessário escutá-los com atenção, com o ouvido consciente que o tempo de fala e o valor dado à palavra são outros. É preciso estar atento à postura de estar fazendo “caridade”. É preciso estar atento à nossa autopromoção nas redes sociais (se autoagregar capital social entre amigos ou relações com outras pessoas brancas se valendo da luta dos povos originários, mesmo sem se dar conta disso).
Trago essas reflexões, que também me faço, com muito respeito à luta e ao apoio das pessoas autônomas e dos coletivos que estão do lado dos guaranis e dos povos indígenas do Brasil. Contudo, enquanto levantamos bandeiras e trazemos conosco todos as nossas disputas, acúmulos, nossas forças e nossos desgastes de outras lutas e disputas – inclusive a eleitoral -, o corpo que está em jogo não é o nosso, o território que está em jogo não é o nosso. São desafios que se colocam nesse momento de reorganização das prioridades. Do surgimento de novos apoios. Os povos originários nunca deixaram de lutar.