Pós Evo Morales, a boliviana Jobana Mayo retoma o ser Quechua vivendo em São Paulo

Pós Evo Morales, a boliviana Jobana Mayo retoma o ser Quechua vivendo em São Paulo

Umas das múltiplas pessoas que passaram pela Aldeia Gãh Ré no Encontro de um ano de Retomada foi Jobana Moya Aramayo. Boliviana, de origem Quechua, vive desde 2007 em São Paulo, onde, entre diversas ações, militou no Comitê Brasileiro em solidariedade ao povo Boliviano, que se mobilizou no Brasil contra o Golpe a Evo Morales em 2019. Jobana é fundadora da Equipe de Base Warmis, uma organização de mulheres imigrantes de diversos países vinculada ao Movimento Humanista Internacional.

A ativista boliviana veio a Porto Alegre para uma visita rápida, dois dias, em que concedeu entrevistas, visitou a Retomada e participou, sábado passado (4), do Encontro “Charlas com autoras – Luta contra o autoritarismo ontem e hoje”, promovido pela editora Coragem. Este evento e a visita de Jobana faziam parte do lançamento na cidade do livro “O golpe de 2019 na Bolívia – Imperialismo contra Evo Morales”, de Paulo Niccoli Ramirez. Jobana contribuiu, junto a Paulo, no conteúdo colaborando na produção, tradução e entrevista de Evo Morales em 2021, na Bolívia, uma das partes de destaque da publicação. “Agora com as fake news precisamos ainda mais reescrever a história de acordo com interesses dos povos, da soberania dos povos. Neste sentido, Paulo fez um trabalho muito interessante não trazendo autores, filósofos, políticos, mas esse registro do Evo Morales enquanto ser humano, uma pessoa que lutou pelo que acreditava, por um projeto diferente”, relata Jobana.



Na manhã de sábado, durante uns 20 minutos, na volta do fogo, enquanto mutirões aconteciam na Retomada Gãh Ré, pude trocar uma ideia com Jobana, perguntar especialmente sobre como ela vê a situação dos povos originários na Bolívia e no Brasil. “Em São Paulo estamos lutando para que o Estado reconheça que existem pessoas imigrantes que são indígenas e que é necessário políticas públicas de acordo com nossa cultura e demandas. Nesta trajetória, é muito bonito conhecer aqui a Retomada. Acho muito importante as novas gerações saberem de onde vem para saberem onde vão”.

Jobana conta que se reconheceu mais fortemente como indígena após sua chegada ao Brasil em 2007. “São Paulo tem uma xenofobia muito grande. Pessoas indígenas do Brasil são discriminadas, chamam elas de bolivianas, peruanas, porque nem reconhecem a existência dos indígenas daqui”. Para tentar livrar a filha destas situações, no período da Escola e Universidade, seus pais escolheram não transmitir a língua Quechua e outros aspectos da cultura. Tentaram construir uma certa “passibilidade”. Eis que 2007 é o mesmo ano em que Evo Morales chega à presidência da Bolívia pela primeira vez. Algo que, segundo Jobana, transformou sua vida e de muitas pessoas de comunidades tradicionais. “Quando Evo Morales volta ao poder, os povos começam a ter orgulho. Pela primeira vez um indígena chega à presidência. A todo tempo víamos era o branco chegar ao poder, ir à universidade. Então foi muito impactante. Soa muito forte dentro de mim. Ele realmente nos ensinou a voltar a amar o que éramos, a ter orgulho”.

Perguntei a Jobana quem foram as pessoas que depuseram Evo em 2019. Segundo ela, foram pessoas que tinham o controle do discurso. “Um discurso Neoliberal, branco, se preferir”. Jobana também destaca o rompimento de Evo com a Igreja, pois transformou o país católico em laico. O ensino de religião deixou de ser obrigatório nas escolas, o que incomodou o setor católico mais conservador. “Além disso, os evangélicos, especialmente igrejas brasileiras, atuavam forte levando doações onde o Estado não chegava e assim foram ganhando adeptos”. A senadora, Jeanine Añez, evangélica, foi a autoproclamada presidenta interina e fez seu primeiro discurso, pós-golpe, com a bíblia na mão.


Além da Igreja, o golpe é uma ofensiva do Neoliberalismo sobre os territórios, como no caso do lítio e da mineração. “Os indígenas são quem protegem os territórios sagrados, então são alvos dos extrativistas. Por mais que tenhamos sofrido a colonização, que estejamos hoje inseridos no sistema capitalista, globalizado, temos outras lógicas de valoração”. Jobana também acredita que o golpe se deu por razões subjetivas. “Ser indígena era algo ruim, associado aos selvagens. Com Evo, se abriu a possibilidade de ocupar qualquer espaço e poder decidir sobre nosso destino. O que antes era apagado, agora defendíamos como nossos símbolos, como a bandeira Whipala. Isso incomoda muito. Desde a formação do Estado Nação, famílias se revezam no poder. E agora entrava nas disputa líderes comunitários, outro tipo de pessoas que não eram bem vistas”. Jobana conta que em sua infância, na televisão passavam programas da Espanha. “Então cresci querendo parecer espanhola, porque era isso que nos ensinavam. Jeanine Añez, tem uns dez anos a mais que eu, acreditou fortemente nisso, nessa colonização. São pessoas que foram formadas e seguem acreditando em preceitos da colonização”.

Para a ativista boliviana, as novas gerações vem para mudar isso. “Hoje é natural empunhar a Whipala, aprender Quechua, Aymara ou o idioma do seu distrito nas escolas. Eu aprendi Inglês e Francês. Meus irmãos já aprenderam Quechua. Eu que vivi essa transição, é muito chocante. E é impressionante que, por hoje ser quase natural, as novas gerações não se dão conta que isso foi fruto de muita luta. Então, ainda vamos ter um processo grande para manter essa conquista”.

No entanto, Jobana concorda que ocupar os cargos não dá conta de proteger os territórios.

“É muito fácil criticar o governo de Evo, só que ele precisava dar respostas ao mundo que estava inserido. É importante ocupar os espaços de poder, mas são espaços condicionados. As escolas e lugares de formação, os valores transmitidos estão ligados ao dinheiro como valor central. O que se aprende na escola, na universidade, prepara para viver nesse sistema capitalista. Se você tem outras bases, ou você se acostuma, ou precisa questionar. A Bolívia, mesmo reconhecendo os direitos da Natureza, precisa, dentro disso que entendemos como democracia, de respostas econômicas. E o que são as respostas econômicas para países como os do sul do nosso continente? É exportação de matérias primas. Esta proposta de mundo que nos propõe o capitalismo não dá mais conta”.

De estado-nação também?

“Também não. Primeiro porque Estado-nação só existe se tem inimigos, fronteira, controle. Não acredito que o mundo vai acabar com uma hecatombe, mas precisamos repensar tudo, questionar. O que estamos ensinando nas escolas, que valores? Essa acumulação para quê? Por que não há uma distribuição? Um estímulo ferrenho ao consumismo, que não se sustenta, nem no bolso e nem na saúde mental das pessoas. Algumas pessoas dizem que se não existisse esse sistema nos mataríamos. Acredito que não, que é um processo, precisamos nos abrir a entender que existem outras perspectivas, outras formas de ver o mundo. Esta forma que temos aprendido do capitalismo, do mundo ocidental, não dá mais conta. Os movimentos sociais, as nações indígenas, estamos nessa disputa e precisamos repensar, porque não podemos mais sustentar esse sistema. Estão surgindo iniciativas. Há um mundo que está caindo, mas eu sinto que está nascendo outro. Precisamos fazer articulações, o coletivo é a resposta”.

Texto e fotos Alass Derivas | @derivajornalismo para @editoracoragem

9 de novembro de 2023

Porto Alegre – RS

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