A omissão da UFRGS também é genocídio

A omissão da UFRGS também é genocídio

Na manhã desta segunda, aconteceu, no Salão Nobre da reitoria da UFRGS, uma reunião das lideranças do Coletivo de Estudantes Indígenas da UFRGS com representantes da Universidade para a entregar uma carta de reivindicações referente a Casa de Estudantes Indígenas. O encontro, que começou pelas 10h25min, é para ser rápido, mas durou mais do que o esperado pela reitoria, com climas de tensão e diversos protocolos quebrados. Desde domingo (6), cerca de 50 estudantes indígenas retomaram um prédio da Prefeitura de Porto Alegre ao lado da universidade para lutar por moradia digna. 

A vice-reitora Patrícia Pranke, que exerce o cargo máximo da universidade esta semana, logo no começo da reunião pediu objetividade, pois tinha um outro compromisso às 11h. Recebeu como resposta o convite da pajé Gah Té Iracema, liderança Kaingang, de respeitar a cultura indígena, o outro tempo. Respeitar o fato das mulheres indígenas e os povos indígenas estarem tentando ser escutadas há anos nesta pauta. E há 500 anos de forma geral. Como símbolo disso, Gah Té ofereceu a pintura com urucum dos símbolos Kaingang e Xokleng. Aceita com certo constrangimento, fiquei me perguntando se a reitora e os demais presentes removeriam a pintura antes dos seus próximos compromissos. A pajé coloriu a testa de todas e todos presentes na sala. Este movimento quebrou um pouco a tensão da reunião. 

Os estudantes indígenas não aguentam mais esperar por uma solução. E realmente irrita pedir que o papo seja rápido ou notar que o coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF), Edilson Nabarro, novamente não se fez presente, não respondeu aos convites de suas servidoras e da própria reitoria. Assim como o reitor, interventor, Carlos Bulhões, que está viajando e ainda não se manifestou sobre a retomada indígena. Quando a vice-reitora falou da dificuldade de falar com Carlos e Edilson, Gah Té jogou seu próprio celular no chão. “Realmente a tecnologia não prestou. Não funciona para vocês. Tem que fazer como nós, comunicar com a fumaça. Eu canso de ligar para Bahia, para o Xingu, Amazonas, isso chega lá. Mas você não consegue falar com seus chefes? Ali da Retomada podíamos começar a cagar ali na cerca, fazer isso com meus netos. Mas eu respeito vocês, a universidade. Mas parece que vocês não nos respeitam. Faça contato com eles, por favor. Essas mentiras não colam comigo não. Queremos é casa para nossos jovens. Eu ocupei aqui a reitoria, fiz fumaça aqui na frente para abrir as grades, abrir vaga para os estudantes indígenas. Mas agora não temos casa digna”.

Quando Leandro Raizer, vice-reitor da Prograd, se mostrou disposto a contribuir discursando que a Universidade não é nada sem a presença indígena, falou das dificuldades financeiras para resolver a questão da casa do estudante. Sugeriu a criação de um grupo de trabalho (GT)  para se pensar uma solução. As estudantes indígenas perderam a paciência novamente. Angélica Kaingang fez uma fala forte, se emocionou, lembrando de toda sua luta que já leva mais de 10 anos nessa busca. Lembrou que em 2016 já foi protocolado um processo reivindicando a casa e nessa época um GT foi proposto. Nitidamente Patrícia e Leandro, seu secretariado, não se informaram sobre o que já havia sido feito pela universidade referente a esta luta. Angélica chorou dizendo que não aguentam mais essa omissão da Universidade. Que as crianças estão em risco, que a saúde mental dos estudantes está em risco. E que isso também é genocídio e a UFRGS e seus representantes são responsáveis se alguma criança cair dos andares da Casa do Estudante Universitário ou algum estudante atentar contra própria vida. Woie Patté, mestrando da UFRGS, liderança jovem do Povo Xokleng, disse que não poderiam se retirar daquele espaço sem uma resposta concreta. “Ficaremos morando na rua enquando o GT trabalha? Até quando isso? Vocês voltam paras suas casas” 

Com mediação dos outros representantes da UFRGS e o comprometimento dos reitores de encontrarem uma solução concreta com o diálogo com a Prefeitura o mais breve possível, o clima aliviou um pouco. Ficou acordado uma nova reunião para quinta, às 15h. Até lá, as representações da UFRGS vão se informar sobre tudo que já foi feito em relação a esta demanda e vão fazer uma proposta concreta aos estudantes. Os indígenas não aceitarão menos que uma solução. A vice-reitora também foi convocada a visitar a retomada para ver as condições que as mães e as crianças estão submetidas nesta luta. 

Abaixo, a carta de reivindicações na íntegra. Abaixo também a fala na íntegra da Angélica. Nada do que eu escrever será mais potente para se informar sobre a reunião do que escutar com atenção a fala desta mãe, estudante kaingang, que há anos luta por um espaço para criar sua filha e poder estudar com dignidade, respeitando sua cultura ancestral.  

Estavam presentes na reunião o coletivo de indígenas da UFRGS, a pajé Gah Té Kaingang, indicada para Dra. Honoris Causa da universidade, a Vice-Reitora no exercício da Reitoria, Patrícia Pranke, a Vice-Pró-Reitora de Assuntos Estudantis, Andressa Lopes Nulle, o Vice-reitor da Graduação (Prograd), Leandro Raizer, os coordenadores do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB), Tamyres filgueira e Alan Brito, as servidoras da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas, Fernanda Nogueira e Bárbara Roza, a Professora da FACED e dos Saberes Indígenas nas Escolas, Magali Menezes, o Secretário de Comunicação da Universidade, André Prytoluk, e a jornalista Cláudia Heinzelmann, o antropólogo da area técnico de saúde indígenas da Prefeitura Rodrigo Dornelles. O Coordenador da CAF, Edilson Nabarro, e o reitor Carlos Bulhões não se fizeram presentes.

CARTA DE REIVINDICAÇÃO DA RETOMADA DOS ESTUDANTES INDÍGENAS AOS GESTORES DA UFRGS

Ao Reitor da UFRGS, Carlos Bulhões

À Pró-Reitora de Assuntos Estudantis da PRAE, Ludymila Barrozo. À Pró-Reitora de Graduação, Cintia Boll.
Ao Coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas – CAF, Edilson Nabarro.

Ao cumprimentá-los, nós, lideranças indígenas do RS, estudantes indígenas da UFRGS e suas comunidades, trazemos o seguinte contexto de reivindicações aos senhores, solicitando providências urgentes, em respeito às necessidades de moradia digna na universidade.

Uma das demandas mais urgentes dos estudantes indígenas que emergem no acesso ao ensino superior é a moradia, que desde a luta pela criação de vagas específicas, em 2007 e 2008, para indígenas e posteriormente a lei de cotas no. 12.711/2012, o debate sobre uma casa de estudantes indígenas específica e diferenciada já vinha sido posta por lideranças indígenas. Este debate tomou consistência junto aos estudantes indígenas, mais especificamente no ano de 2014, quando mulheres indígenas passaram a ser maioria na aprovação das vagas, pois essas eram mães ou passavam a ser durante o processo da graduação.

É fato que temos acesso às vagas de moradia na Casa do Estudante Universitário (CEU), mas essas vagas impossibilitam a presença de filhos de estudantes indígenas, tendo inclusive no regimento interno da CEU em um de seus artigos a vedação de permanência de crianças. Ainda assim, algumas mães estudantes indígenas, sem ter outra opção, permanecem escondidas com seus filhos na CEU, um lugar extremamente ríspido, que não aceita os modos de ser e viver indígena, ainda um lugar que não apresenta em sua estrutura física segurança para crianças. Inclusive muitas vezes estas mães foram intimadas por e-mail a se apresentarem na administração da CEU para tratar da saída das mesmas (e-mail em anexo).

Já outras quando optam pelo auxílio aluguel de 450 reais, concedido pela política de assistência estudantil dentro da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), não conseguem com este valor pagar nem um aluguel inteiro, ainda mais luz, água, internet, alimentação, considerando os valores exorbitantes do custo de vida na capital Porto Alegre, além das exigências de locação de imóveis pelas imobiliárias. Esta situação se agrava ainda mais no atual contexto em que o governo federal corta significativamente o auxílio estudantil para os indígenas. A exemplo, a bolsa Permanência MEC que em 2022 disponibilizou somente 04 (quatro) bolsas e não abria para novas candidaturas desde 2020.
Ademais, de todas as justificativas trazidas, sofremos com discriminação e preconceitos principalmente pelo nosso modo de viver, que é de conviver uns com os outros, nos reunir, nos alimentar, estudar, rir, todos juntos, nos relacionar com as várias gerações desde crianças até os mais velhos. Sempre recebemos familiares, lideranças, nossos pajés, com isto percebemos os vários incômodos e olhares atravessados sobre nós, inclusive com reclamações dos demais moradores não-indígenas na secretaria da administração da CEU. Para nós não se trata apenas de um imóvel para nos acomodarmos, mas de um espaço que permita ser quem somos, com nossos modos de vida e aprendizados, com nossas culturas, com a nossa convivência e sobrevivência.

Para além de conversas e reuniões com o GT que acompanhava as ações com os estudantes indígenas, certificamos aqui alguns de nossos passos na tentativa do diálogo sobre nossas demandas. No ano de 2015, o coletivo de estudantes indígenas participou da I Conferência Indigenista Local em Porto Alegre/RS, os quais também se fizeram presentes alguns representantes da UFRGS, depois duas representações de estudantes indígenas como delegados na Regional em Florianópolis/SC onde encaminhamos e aprovamos junto aos demais participantes a proposta de uma moradia específica e diferenciada para estudantes indígenas de universidades públicas. No ano de 2016 foi entregue e protocolado na UFRGS um abaixo-assinado em apoio à reivindicação de uma casa de estudantes indígenas.

Mais tarde no ano de 2017 entregamos um documento solicitando a urgência desta demanda, principalmente relacionada às mães estudantes, número do processo 23078016449-2016-67 (digitalização do processo inclusa a este documento e carta enviada à CAF em 2017), desde então não obtivemos nenhum retorno concreto e efetivo.

Reafirmamos e baseamos nossas demandas a partir de direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 nos artigos 231 e 232, onde reconhece nossos modos de ser e viver, nossas organizações sociais, costumes, línguas e crenças e nossa legitimidade sobre ingresso em defesa de nossos direitos e interesses. Referindo ainda o artigo 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que o Brasil é signatário, na qual prevê a consulta prévia, livre e informada quanto à reflexão, elaboração e execução das políticas públicas sociais, entre elas as políticas de ações afirmativas no ensino superior.

Para além de sofrer sem uma moradia específica, sofremos com o descaso das demais políticas públicas, como da saúde indígena e educação infantil. Somos estudantes que viemos de diferentes cidades e comunidades indígenas a quilômetros de distância de Porto Alegre, e somos vulnerabilizados por não sermos referenciados em um território, para que possamos usufruir dos direitos específicos e diferenciados que possuímos como cidadãos. Territorializados em um espaço que seja nosso, as demais políticas públicas sociais transversalizadas com as ações afirmativas seriam melhor acessadas. Acreditamos que uma CEU indígena seria um grande passo ao encontro de nossas necessidades e efetivação da política de ações afirmativas.

É importante ressaltar que já existem vários estudos e pesquisas publicados como artigos, teses e dissertações (BRITO, Patrícia Oliveira, 2016, disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/148633/001003096.pdf?sequence=1&isAllowed
=y), inclusive de estudantes  e servidores da UFRGS que discutem e relatam as demandas dos
estudantes indígenas. Este importante debate de permanência nas ações afirmativas já vem sendo efetivada por outras Instituições Federais Universitárias. Outras universidades públicas brasileiras já adotaram em suas políticas de permanência a moradia indígena estudantil, como é o caso da Universidade Federal de Santa Maria-UFSM, Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, Universidade Estadual de Feira de Santana entre outras.

O movimento de ocupação e retomada que está ocorrendo no prédio ao lado do Viaduto da Conceição é um ato político e de permanência, de tensionamento e visibilidade de nossas pautas e necessidades, considerando que todos esses anos de tentativa de diálogo, não foi realizada ação concreta e efetiva em resposta a demanda da Casa do Estudante Indígena. Estamos mobilizando todas as instituições e órgãos de defesa dos direitos dos indígenas para discutir e demandar junto à UFRGS, e não saíremos mais sem respostas.

Com todo exposto, solicitamos que a UFRGS crie, URGENTEMENTE,  condições para moradia indígena digna com a criação da Casa dos Estudantes Indígenas, possibilitando a moradia para as crianças e a convivência com seus familiares e lideranças comunitárias indígenas.


Aguardando sua manifestação para compor uma Comissão com as Lideranças Indígenas para o estudo e execução da demanda.

Atenciosamente,

Coletivo de Estudantes Indígenas/UFRGS.

Porto Alegre, 07 de março de 2022.

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