Texto e Fotos Alass Derivas
Publicado originalmente no Nonada – Jornalismo Travessia
“Eu não sou artista, cara, sou militante”. É o que diz Telmo Flores, dando pistas do caráter de luta da banda Kalunga Quilombola, da qual é o vocalista e o principal compositor. Apesar de não se ver como artista, “Mestre Telmo”, como é chamado pelos outros integrantes do coletivo, se preocupa com a evolução técnica da banda e com o como vai ser recebida a próxima “intervenção cultural”, que acontece no próximo sábado, dia 8, no Afrosul Odomodê. É o lançamento do primeiro CD da Kalunga. Na noite, shows de abertura com a banda La Digna Rabia e com a rapper Negra Jaque estão previstos.
O álbum, chamado Na trilha e no ritmo do negro, foi gravado através do Edital Estúdio Geraldo Flach, da Prefeitura de Porto Alegre, e prensado e distribuído com o dinheiro arrecadado em um financiamento coletivo. São dez músicas de peso, com letras que falam sobre a afirmação da negritude, sobre a luta quilombola, sobre a repressão policial, sobre o dia-a-dia de quem vive em situação de rua. “Não somos entretenimento. Se for, é um entretenimento com mensagem. Se não for com mensagem, nem faço”. Além de Telmo, na composição atual da banda, quatro mulheres puxam os microfones. Duas guitarras, violão, bateria e três percussionistas. Composição que garante um som cheio, que preenche o corpo, com muitas quebradas e balanço.
Na trajetória da Kalunga, são diversas apresentações em quilombos (como o de Casca, o do Silva, dos Machado, Morro Alto) e em outros territórios de luta, como a Escola Porto Alegre – mantida devido à batalha dos seus estudantes, a maioria pessoas em situação de rua -, a Ocupação Lanceiros Negros e a Ocupação do Demhab. Em outro espaço de luta, no Moinho Negro, mais especificamente no “Estúdio Caverna”, rodeado por caixas de som e tambores, por mais de 1h30min, Telmo falou sobre sua trajetória com a música, sobre a formação da Kalunga, sobre o que é ser negro e sobre questões como a atuação da polícia, a influência do sistema político na vida do negro e o trabalho de base da direita.
Nonada – Como é a tua trajetória com a música e como é que surgiu a Kalunga nessa história?
Telmo – Desde a minha adolescência eu sempre tentei expressar o que eu sinto através de versos e prosa, de música. Sempre quis escrever, fazer, tentar. Depois, meu amigo Claudinho que estudava na OSPA, que era muito meu amigo, hoje tá morando na Bahia, me disse: “Ô, meu, tu tá comprando uma motinho e tu não tem um violão, porra”. Bah, não tenho mesmo, mas nós fazia samba lá em casa, nas batucadas e ele também como compositor fazia uns lances. Um cara bom de cello para caralho. E aí começamos. Comecei mais com o violão, mais com a viola, cantando junto com os caras que tocavam as minhas músicas. “Ah, faz aí então”. Em seguida eu comecei a curtir as escolas de samba, principalmente a Imperadores. Lá a gente tinha uma ala chamada Jorge Luis, que é uma baita memória que eu tenho daquilo lá. Bah, cara, dentro de uma escola de samba que só tem nego que toca violão, cavaquinho, surdo, pandeiro, fazer samba foi fácil. Fácil não, né? Então a gente começou. Fiz um samba para a ala Jorge Luis que eu tive a felicidade de ver a bateria da escola tocando. Os caras cantando lá, sabe? E eu não canto.
Tô cantando agora na Kalunga, mas eu era todo introvertido. O João Sete Cordas foi um cara que me entusiasmou bastante, me deu bastante incentivo. Quando eu entrei na ala Jorge Luis, onde começa esse ciclo de músicas, eu era militante partidário, ex-petista, de esquerda, acreditava nessa história. Hoje eu não sou mais. Então a gente começou a organizar essa ala, a militar. Então eu fiz um samba para a ala. A gente participou até das eleições para querer assumir o troço lá. Um coletivo maravilhoso, forte, 50 negão. Homens, mulheres, crianças. Lá na nossa ala ia o Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Neguinho da Beija-Flor. Quando começou esse embate perene dentro da escola, a gente fez uma música e gravamos em um estúdio para fazer as chamadas. Acabou que todo mundo na quadra já sabia da música. “Que onda é essa meu irmão, de razão, força e raiz”. Eu tenho até uma jaqueta que eu uso até hoje. “De razão, força e raiz. O bicho tá solto, pode crer, na ala Jorge Luis. Toma cuidado seu moço…”.
A direção da escola, que era o presidente, que é meu amigo, já faleceu, que é o Roberto Barros, o Betinho da Imperadores. “Toma cuidado seu moço, que é para não se machucar. Porque o bicho tá solto e ele pode te pegar. Somos todos irmãos no direito e na razão. Vamos abrir essa panela, se não vira tradição. Por que a massa tá cansada de tanta enrolação”. Então isso foi uma coisa assim que a bateria [imitando o som da bateria], pô, pegou cara, e eu ali vibrando. E tem um termo que eu uso nessa música que é “se não vira tradição”. Essa filosofia que tá sendo implantada, esse método não é o nosso. Aí depois o João Sete gravou para cantar. Começa aí.
Nonada – Que ano foi isso?
Telmo – Isso foi 84, 85, por aí. Isso de uma maneira quase que oficiosa. Eu tinha uns sambas antes disso. Então, bicho, dali foi muito legal, me deu um plus. Em seguida eu tive uma dádiva de ter um convívio, meio que breve, com o Bedeu. Grande Bedeu, meu amigo. E o Bedeu me deus uns toques. Fui trabalhar com ele em uma escola de samba que ele foi contratado. Ele me levou junto, porque a gente tava bem parceiro, né? E eu conheci essa sumidade que é o Jorge Moacir, o Bedeu, sabe? Que me ensinou quebradinhas, tu tá entendendo? Para eu aprender a compor, cara. Que ele era um mestre do caralho, o Bedeu, pô. E ele disse “Negão, pensa em uma história, tenta embelezar, tentar contar ela, tenta fazer versos e prosas. A história da tua vida, como é que foi? Aí tu vai botando…”. Pô, dali foi um “pein”, né, cara, para eu conseguir deslanchar um pouco mais. Dentro das minhas limitações, né? Porque compositores afudê mesmo eram eles. Eu comecei a meter a cara no mundo. A fazer essas coisas. O “Xô Homofobia”. Hoje é o “Oxumaré”, que tá gravado [música presente no CD da Kalunga], foi lá na Imperadores, cara. Eu tenho dois períodos na minha vida. O primeiro de um menino pobre, mas que tinha acesso a algumas coisas. O meu pai era um negro muito trabalhador, né? Um negão que falava francês e alemão razoavelmente bem. E a minha mãe, analfabeta, uma índia muito bonita. E o meu pai negão. Igual a eu assim. Que eu sou o mais preto da família. Tem mais dois irmãos que são claros.
Mestre Telmo, com 65 anos, começou na música na Escola Imperadores do Samba, na década de 80 (Foto Alass Derivas)
Nonada – Tu é daqui?
Telmo – Sou daqui. Nascido e criado em Porto Alegre. Aí, cara, de uma dissidência da Imperadores fizemos o Areal da Baronesa, que se tornou a Academia de Samba e Integração do Areal da Baronesa. Que hoje é o Quilombo do Areal, entendeu? E lá ainda tem trabalhos desse grupo que se formou, que eu fazia parte. Eu, Celso e o Juarez que formamos o Areal da Baronesa, a escola de samba que ficou um bom tempo, oito anos, não sei quanto. Eu fui presidente durante três anos e depois a gente passa, porque cansa para caramba, né? Logo em seguida vem a Frente Quilombola para fazer isso aí. Eu sempre fui um cara que teve dentro da luta, com uma pequena compreensão das lutas, mas as pessoas que eu me aproximava eram pessoas que sabiam. E aí a gente começa. A Frente Quilombola foi um manancial para eu conseguir escrever. Aquela luta tão bonita. Antes eu tinha outros valores, era um negro pobre, minha mãe pobre, meu pai negão, líder sindical, preso político, sindicato do comércio ambulante, com base territorial em todo o Rio Grande do Sul. Eu trabalhava com ele. Mas eu sempre tive acesso, tinha um carrinho para andar, uma motinho, morava razoavelmente.
Meu pai era um negão muito trabalhador. Mandou eu estudar a vida toda. Morreu dizendo “cara, vai estudar, cara vai estudar, eu banco!”. E como aquele momento era outro eu queria era desfilar com meu autinho, queria as namoradas, queria a vida legal na Imperadores, aquela ilusão, aquela coisa nada consciente. De repente me instala isso, de uma hora para a outra, e eu vim mudando. Hoje eu sou outra pessoa, cara. Hoje com esse lance eu sou outra pessoa. Eu não quero perder o elo com a base. Então eu começo a fazer essas músicas. Olhando documentários… “Quilombola”, cara, foi lindo para caralho. Eu vi um documentário e “vou começar por aqui”. E aí fui feliz na dissertação. Digo que fui feliz porque eu também gosto da música. Eu amo a música, me emociono para caramba.
Nonada – Que documentário é, tu lembra?
Telmo – Não tô bem lembrando o nome, mas é a respeito de Itamatatiua, quilombo que tem no Maranhão. Puta que pariu, eu vi aquilo e… o Claudinho me ensinou a fazer um Lá, um Dó… eu comecei a me encarnar, fazer um acorde aqui, e comecei a fazer minhas músicas por aí.
Nonada – Que Claudinho?
Telmo – O Cláudio Moraes, cara sensacional, meu amigo. Mora na Bahia. Então eu começo a fazer ali. Da “Quilombola” veio “Na rua”, que é para o pessoal de rua. A luta dos quilombolas é emocionante para caralho. E comecei “ô, Maranhão, onde eu fui imperador”. Imperador… eu não sei se tu tá ligado no que é um imperador. É o cara que faz a Festa do Divino. Então esse ano é tu o imperador. Ano que vem é o fulano. E eu canto como se eu tivesse sido um imperador. “Ô, Maranhão, onde eu fui Imperador, nessa Festa do Divino, nego mino ancestral”. Há anos que existe isso lá, é tradicional. Aí veio uma série de músicas, que nem tá no disco, mas a gente já tá preparando o próximo, com outras coisas. Botando a religiosidade, o batuque. Aí eu encontro no Bar da Carla o Onir [Araújo, advogado e integrante da Frente Quilombola]. A gente fez uma música junto, “vem cara, vamos fazer juntos”.