Entrevista: Paulina Chiziane, o ato de colonizar está na mente

Entrevista: Paulina Chiziane, o ato de colonizar está na mente

Ela é a primeira mulher a lançar um romance em Moçambique; na juventude foi militante do Partido Frelimo, que lutou pela independência do país; é atuante no movimento feminista do país; e possui uma espiritualidade marcante. Ela é Paulina Chiziane

Por Alass Derivas e Marcelo Hailer.

Publicado originalmente em março de 2014 na Revista Bastião e reproduzido na Revista Fórum.

Tambores vibram no palco da maior universidade privada de Moçambique. Sentada entre os sete músicos, Paulina Chiziane entoa um cântico evocando os espíritos dos ex-presidentes Eduardo Mondlane e Samora Machel. A música tem a intenção de convocar o passado para convencer os governantes atuais a firmar a paz no presente.

Em um país extremamente formal, batucar dentro de uma instituição é uma quebra de tabu. Na verdade, lançar o livro “Por que vibram os tambores do além”, que conta a história do curandeiro Rasta Pita, dá sequência a uma série de rompimentos de paradigmas que Paulina acumula.

Ela é a primeira mulher a lançar um romance em Moçambique (Balada de amor ao vento, publicado em 1990); na juventude foi militante do Partido Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique, partido de esquerda que lutou pela independência do país); é atuante no movimento feminista do país; e possui uma espiritualidade marcante. Por alguns, é chamada de radical. “As pessoas não estão habituadas a questionar. Quando alguém questiona, dizem logo que é radical”, rebate ela, sem fazer muito caso.

Em uma tarde quente de novembro, Aldino Languana, pintor moçambicano e documentarista, nos guiou de carro até o subúrbio da capital, Maputo, onde fica a casa de Paulina. Conseguimos marcar a entrevista após conhecer Aldino no lançamento do novo livro de Paulina e aceitarmos a contraproposta de nosso encontro ser filmado – ele está preparando o primeiro documentário sobre a escritora. Em pouco mais de uma hora, em um cômodo improvisado na sua sala, Paulina expôs sua visão sobre o colonialismo ocidental em Moçambique, criticou o ingresso de Igrejas estrangeiras e de novelas brasileiras no país e expressou a importância de dar voz à quem normalmente não possui. Tudo de forma serena e sem o peso das obrigações. “Só os indivíduos eleitos ou nomeados que podem dizer que têm papéis ou deveres. Eu faço aquilo que posso fazer”.

Para quem tu escreve, Paulina?

No princípio – pois eu já estou na literatura há quase 25 anos –, eu escrevia pra mim. Lembro-me de ter escrito pequenos poemas em cadernos de escola, etc. Depois de certa evolução, publico um romance, que tem muito de íntimo, fruto da minha observação do mundo. E fui evoluindo até hoje. Chegado esse tempo, achei que chegava de me sufocar, de estar a pensar em criar, pois em qualquer esquina, em cada lugar, existem pessoas que têm algo para dar, algo para contar, mas não têm o domínio da leitura e da escrita, que é o caso do curandeiro Rasta Pita. Ele tem uma história magnífica para contar, mas é um indivíduo que aprendeu mais da tradição africana do que propriamente na escola formal. É claro que ele sabe ler ou escrever o básico, mas não para produzir um livro. Para mim, é muito mais fácil pegar um gravador, ouvir a história desse homem e transformar isso em um livro. Foi exatamente essa a tarefa que eu fiz. Mas também não foi só por isso. Eu sou uma pessoa que percebe um pouco das raízes, da identidade e, portanto, acompanho esse conflito que existe entre o pensamento ocidental e o pensamento africano. Gosto de comparar os dois universos e acabei descobrindo que há muitos valores nossos, africanos, que estão a desaparecer, pois as pessoas que detêm esse conhecimento não tem o domínio da leitura/escrita. E então decidi, sobretudo com esse curandeiro, emprestar a minha escrita para alguém contar a sua história. Se for olhar para o livro, da maneira que está formado, é uma biografia dele, a sua visão de mundo, mas escrito por mim. É uma experiência. E mesmo no lançamento, tive a oportunidade de conversar com alguns curandeiros que se surpreenderam, porque a maior parte das pessoas que fazem o doutorado, o mestrado, a licenciatura em áreas como antropologia, para conseguir o seu diploma, vão buscar os conhecimentos nessas pessoas. São perguntas, são questionários muito leves, muito superficial, mas a partir do conhecimento dado pelo curandeiro, o indivíduo da academia europeia consegue o seu diploma. E essa é a primeira vez, segundo eles, que um escritor coloca um curandeiro em um patamar de visibilidade. E isso foi muito importante para eles.

Expor estas histórias tradicionais é uma maneira de combater essa imposição do saber colonialista?

Sim, porque, repara bem, as pessoas de Moçambique não conhecem o curandeiro. O que se sabe, se lê sobre eles, foi escrito por antropólogos e sociólogos no tempo colonial. É a visão eurocêntrica falando sobre um africano. Depois surgiu alguns outros livros um pouco melhores sobre esse tema, mas ainda são textos de academias ocidentais, com uma série de estereótipos para descrever esses indivíduos. Nessa experiência que eu tive, o curandeiro fala por si, em primeira pessoa. O tipo de mensagem que ele transmite está livre dos preconceitos ocidentais. É, claro, eu de vez em quando sugeri melhores formas de expor as ideias dele. Mas eu deixei que espelhasse o seu mundo interior. O livro começou a circular há três semanas, já tem pessoas que leram e se surpreenderam. Segundo eles, esse livro ajuda a olharmos para essa classe de profissionais, há uma contribuição para a mudança de visão de algumas pessoas sobre a figura do curandeiro. Portanto, quanto mais livros houver à volta desses indivíduos, – feito por eles ou por alguém que lhes ajude a expressar, lhes dê voz e lhes dê lugar –, a visão do mundo vai melhorar. No mínimo, a forma que serão tratados será outra.

É impressionante como muitos moçambicanos frequentam o curandeiro, usufruem do seu saber, mas escondem ou renegam. Por que a senhora acha que é importante colocar em pauta esses tabus?

Pois vai ajudar as pessoas a terem segurança em si mesmas. Para mim, quase todos são a favor. Todos os africanos frequentam o curandeiro pelo menos uma vez na vida. A razão é bastante simples: existem soluções que a medicina ocidental não tem. Ao meu ver, a medicina ocidental é quase mecânica, vai tratar do coração, do pé, do olho. Enquanto que a medicina tradicional vai muito mais longe. Portanto, quero até usar as palavras desse curandeiro. Para se tratar um doente, é preciso ter três níveis: o nível do indivíduo, o da sociedade e o de deus. Primeiro, ele faz o diagnóstico, lançando conchas ou pedras e pergunta aos espíritos o que diz o olho dessa pessoa a si própria, o que diz o olho do mundo e o que diz o olho de deus. O curandeiro, para tratar do doente, tem a dimensão individual, vai para a social e também tem a espiritual. A relação doente-curandeiro é diferente da relação doente-médico. O médico está ali, faz o seu trabalho perfeito, mas olha apenas pelo lado do indivíduo que está doente e, de vez em quando, da sociedade que o rodeia. A outra dimensão espiritual não faz parte do mundo ocidental. Todo o ser humano tem um quê de religiosidade, porque há momentos na vida em que tudo que nos rodeia falha, aí necessitamos acreditar em uma força suprema para poder resistir. Conheço casos de indivíduos que foram diagnosticados com cancro, por exemplo. Uma doença fatal. Essa pessoa sabe, de antemão, que a medicina não tem uma solução para ele; que a sociedade não tem uma solução para ele. Mas, se esse indivíduo tem fé, numa dimensão maior, consegue resistir melhor, pois tem algo de transcende que o segura. E aí entra a figura do curandeiro, que é muito forte. No mundo ocidental, depois do médico, as pessoas vão buscar o padre. Aqui não, quando a pessoa entra nessa fase, busca-se o curandeiro, que faz o indivíduo circular nesse mundo além da matéria.

Mas por que ainda há aversão, por que é um tabu? É devido a influência estrangeira, a influência direta de um saber ocidental?

Para mim, começou com a influência do ocidente. E essa pressão continua! E continua em um país independente, através daqueles que se julgam conhecedores do saber científico. Então, quem faz maior pressão hoje são os próprios moçambicanos, e não o colonialismo que já foi. O colonialismo já se foi há quase 40 anos, mas ainda não tivemos “tempo” para termos uma conversa um pouco mais aberta sobre a nossa própria identidade. Nesse momento, as grandes pressões partem das Igrejas, que, para mim, são centros de superstição, mas também são centros de tabus, porque são elas que trazem com muita força essa ideia do diabólico, do satânico. Claro que nas nossas tradições também temos o medo do feitiço, dos feiticeiros. Nós já possuímos essas superstições nefastas, por que as igrejas têm que trazer mais?

Você crê que a Igreja Universal, tão presente aqui em Moçambique, tem influência nessa marginalização do curandeiro?

Não só, porque a Universal não é a única. Para mim tudo que são igrejas de fora, como Assembleia de Deus, Igreja dos Doze Apóstolos, entre outras, trazem dentro de si uma ideologia colonizante. Só que não são tão agressivas como a Igreja Universal. Mas todas as igrejas defendem que tudo que é espírito, toda a espiritualidade africana, tudo que é cultura africana é diabólica. Todas pensam isso.

Tu acha que a Igreja impede que a sociedade avance, no que diz respeito, por exemplo, à valorização da mulher e à causa homossexual?

Para mim, a Igreja tem coisas boas. Não há dúvida. Eu faço críticas às igrejas em apenas determinados aspectos. Na história da África, na história de Moçambique, nós encontramos igrejas que dão formação, dão educação, que amparam os órfãos, que fazem uma série de ações sociais importantes. Mas, ao mesmo tempo, trazem uma mentalidade colonizante. Portanto, eles dão, mas fazem com que as pessoas que se beneficiam e as comunidades em volta deem os seus próprios valores em troca, para olhar apenas para aquilo que é o pensamento ocidental. Então isso não é muito bom!

Paulina Chiziane em sua casa. Foto Alass Derivas / Revista Bastião

Paulina Chiziane em sua casa. Foto Alass Derivas / Revista Bastião

Há um colonialismo do saber entre os próprios moçambicanos?

Eu acho que sim. Um dos casos mais recentes de colonialismo que eu vi – e que me deixou extremamente chocada – foi quando estive em Chai, em Cabo Delgado. Chai é o distrito onde começou a luta armada pela libertação nacional. Portanto, um distrito dos heróis, dos guerreiros, dos bravos, daqueles que lutam contra a instituição. Foi ali que começou a guerra que culminou com a independência do país. Fui assistir ao funeral de um homem. Estava lá trabalhando, um homem morre, todo mundo vai ao funeral. Como eu estava lá, logicamente também fui. Logo depois de acabar o funeral, a família do morto começa a insultar a viúva. Porque ela matou aquele homem, porque ela não poderia voltar mais para casa dela. Ela tinha que ir embora para a casa dos pais dela a partir naquele momento. Ora, a senhora tinha quatro filhos, não lhe deram  sequer direito de ficar com os filhos, não lhe deram sequer o direito de voltar à casa e buscar a roupa que era dela. Saiu do funeral expulsa, sem nada, para ir recomeçar a vida na casa dos pais. Isso é tradicional. Não é a lei, é a tradição. Então, esse é um distrito modelo, que luta contra a injustiça. Eles fizeram a luta contra o colonialismo que vem do outro, mas o colonialismo doméstico, aquele que vem  da tradição, que cria marcas profundas nas pessoas, é aplaudido porque é tradição. Então, mesmo no nível da família, esse colonialismo existe, e se expande pela sociedade e assim por diante. Colonialismo não é mais que relações de poder de uns sobre os outros. E nesse caso concreto das mulheres maconde (grupo étnico que vive no nordeste do país) é chocante. Nunca esperei ver uma coisa dessas na vida. Como é que essas crianças vão crescer longe da mãe? E aquele tipo morreu porque ele bebia muita cachaça. Ainda por cima isso. E, no fim, aquela mulher tem que ser expulsa, sem direito aos filhos gerados pelo próprio ventre.

E por vezes a família materna a rejeita também.

A rejeita. E para onde vai essa mulher? Já há leis que resguardam a mulher viúva, mas ainda é pouco aplicada fora do centro urbano. Talvez por medo das próprias mulheres de irem atrás dos seus direitos… Nas zonas rurais a tradição é muito mais poderosa. É impressionante viajar para o campo e descobrir que o meu país tem um outro país dentro dele. Até parece que é uma legislação para as cidades e outra para o campo. É claro que a questão das guerras, a questão da pobreza influenciam bastante porque os serviços públicos não conseguem chegar a essas localidades. As pessoas vivem de acordo com as regras dos seus ancestrais, que é uma coisa horrível.

A senhora viu algum avanço da luta feminista no rompimento de algumas dessas tradições?

As coisas estão a melhorar, não posso negar. E falando da minha experiência, quando eu tinha 18 anos, o sonho de uma mulher era casar e ter filhos; ter um empregozinho, casar e ter filhos; fazer um enxoval e noivar. Ficar sentada à espera que apareça um noivo. Esse foi o meu tempo de 18 anos. Passados cerca de 40 anos, a situação mudou muito. As mulheres já partem para uma situação melhor, para um profissão melhor. Lutam pela sua própria autonomia. Mesmo nas zonas rurais, em que a tradição é muito forte, se hoje se pergunta a uma mãe o que sonha para a sua filha, ela vai dizer que queria que fosse à escola para ter um emprego amanhã. O que é diferente de 20 anos atrás, que a mãe dizia que agora que a filha cresceu tem que iniciar os rituais para achar marido e arrumar a vida. Hoje a visão mudou. Portanto, é lento, mas há mudanças.

Me impressionou muito o racismo interno de Moçambique, essa supervalorização do branco.

Isso é uma questão econômica, que tem a ver com toda a estrutura de vida que foi deixada pelo sistema colonial. Portanto, vai levar-se um tempo para se apagar, por isso mesmo é necessário continuar a dialogar a volta desses assuntos. Aqui não se vê isso. Eu trabalhei na Zambézia (província a 1600 km da capital), onde a realidade é bem mais crua. Os melhores postos de trabalho, as melhores posições, casas, são de mestiços e dos negros. E eu escrevi um livro, O alegre canto da perdiz, que fala muito sobre isso, que me chocou profundamente. Porque a questão do racismo, muitas vezes nós olhamos como alguma coisa que vem do branco. Não é verdade. O livro que escrevi fala de uma mulher negra que teve dois maridos: o primeiro negro, com quem teve dois filhos, e o segundo, branco, com quem teve dois filhos. Portanto, ela tem 4 filhos: dois negros e dois mulatos. E o que ela faz? Transforma os dois filhos negros em subalternos dos mestiços. E ela dizia: “Os filhos mestiços são especiais, os negros não”. Porque o pai branco oferece rendas e sedas, pão e queijo, enquanto que o pai negro só oferece bananas e cocos. É uma questão econômica. E isso não é fantasia, eu encontrei uma família assim. Os filhos mulatos são proprietários de bombas de combustíveis, de empresas, são pessoas ricas, enquanto os negros são serventes dos mulatos. E quem faz a gestão da vida é a mãe negra, que é mais escura que os próprios filhos. Então a atitude dos próprios filhos não tem a ver com o individuo, é uma questão de poder. Se nós recebêssemos por igual – pretos e brancos – não haveria isso que vocês viram. Claro, o moço que está a trabalhar sabe que ao servir um branco vai receber uma gorjeta, e ao servir um negro não recebe nada. É só por isso.

Na década de 1980, você foi uma grande militante jovem e feminista da Frelimo. Qual a sua avaliação da conjuntura atual do partido?

Não sei, eu às vezes não me dou ao tempo de analisar. É como uma recusa de fazer esse tipo de análise, por causa do desencanto que eu sinto. Eu fiz parte dos grupos, das confusões revolucionárias da época, do tipo colar cartazes nas ruas, organizar greves. Eu fiz isso. Tinha um grande sonho, que era ver um país melhor, um país justo, etc. Mas o andar do tempo demonstrou novas realidades. Muitas pessoas que estão no poder hoje fizeram parte deste movimento contra o colonialismo, contra o capitalismo, contra a corrupção. E hoje são os mesmos que praticam aquilo que ontem combatiam. Então isso dá um desencanto. Tanta gente que sofreu, tanta gente que morreu… Falando dos que estão no poder: estamos hoje em meio a um conflito armado. Há todo um discurso da oposição, que diz que trouxe a democracia a Moçambique, há toda uma fala de um desejo de paz. Queremos a paz. Mas, contrariamente, vão para o mato e começam a guerrear com os militares. Então isso também é outro desencanto. O movimento da oposição foi aquele que trouxe a maior instabilidade do país. Quando tudo parecia estar bem, eis que voltam para o mato. Não sei porque razões e nem sei se estou interessada em conhecer as razões deles. A única coisa que me interessa é que há um povo que sofre, há um povo que morre. Então esses indivíduos, tanto do lado da oposição, quanto pelo lado dos que estão no poder, estão a trair os seus próprios ideais. Enquanto uns lutavam contra o capitalismo, para criar uma sociedade igual para todos, tornavam-se eles os capitalistas. Os outros dizem que são os pais da democracia são os mesmos que violam a paz e criam distúrbios pelo país.

Como você vê a organização da sociedade civil em Moçambique?

Como em qualquer parte do mundo, eu acho que a atuação da sociedade civil é muito importante, é de extrema importância, mas eu tenho as minhas críticas em relação a sociedade civil moçambicana.  Eu já trabalhei muito com movimentos da sociedade civil. Uma sociedade civil, para ser forte, tem de ser autônoma, financeira e politicamente, mas o que acontece com a maior parte das organizações não governamentais (ONGs) em Moçambique não é isso. As nossas ONGs dependem do financiamento estrangeiro, portanto, qualquer posicionamento de um indivíduo dependente vai sempre tender para agradar àquele que paga. Por isso que digo: não existe sociedade civil em Moçambique. Ainda não existe. Existirá. O que temos são grupos de pessoas que são financiadas por organizações estrangeiras. Que, de certa maneira, fazem diferença, porque conseguem trazer uma nova visão e conseguem dinamizar um pouco aquilo que é o país. A atuação da maior parte das ONGs em Moçambique em relação ao governo é uma atuação quase de concorrência. É como se as ONGs pudessem suprimir o governo. Ora, isso não pode acontecer, não pode. Então são várias questões que se podem levantar na volta desse assunto. A minha apreciação é que, de fato, o trabalho das ONGs é bom, mas a sociedade civil moçambicana ainda precisa de muitos anos para se afirmar. É uma sociedade dependente. Uma pessoa dependente nunca pode ter um bom desempenho.

Tanto o investimento estrangeiro quanto a intervenção cultural são muito fortes aqui em Moçambique. A senhora acha que isso acaba influenciando muito nos rumos que o país toma?

Exatamente. Eu não acredito muito nos doadores. Se eles dão, é para tirar alguma coisa. Não sei o que lhes encoraja a dar, porque não há ninguém que dá para nada. Esse país é conhecido há muitos anos e sempre se soube o potencial que Moçambique tem. A partir dos anos 1940, dos anos 1950, sabe-se que o nosso país é rico em petróleo. Sabe-se. É verdade que os estudos anteriores não eram tão desenvolvidos como os estudos que hoje se fazem. Então, os indivíduos ou as instituições que doam é porque sabem que amanhã poderão tirar benefícios. Estão a comprar o país.

Bem, seguindo nesse ponto. Hoje se fala muito sobre as ricas reservas de petróleo de Moçambique, que vão ser intensamente exploradas em breve e que vão fazer o país crescer muito. A senhora acredita que, apesar de entrar muito dinheiro no país, essa riqueza seguirá indo para as mãos dos mesmos?

Eu não sei o que posso dizer sobre isso. O que eu estou a dizer é que aqueles que estão a dar estão a comprar alguma coisa. Eu não olho paras as ditas doações feliz. Quem dá, quer tirar alguma coisa. Então, estão a comprar o país. E, sobre a história dos recursos naturais, confesso que percebo muito pouco sobre esse assunto. Não entendo nem a mineração, nem nada disso. Mas o que eu já vi acontecer em outras partes do mundo me faz creer que isso vai a se replicar aqui. Conflitos, os conflitos amardos que vão continuar, a desestabilização que vai continuar. Nós não temos capacidade técnica nem mão de obra para controlar petróleo, nem gás, nem ouro, nem nada. Não temos nada disso. E os que vêm explorar, vêm, extraem e vão-se embora. A gente não sabe o que tiram, o que fazem. Então, não sei.

Como você vê a aproximação do Brasil e de Moçambique – assim como com outros países da África?

Eu acho uma aproximação essencial. O Brasil não seria Brasil se a África não existisse. Ah, isso está claro. Nós estamos ligados. Eu não estou a falar das questões políticas, pois entendo muito pouco desse mundo. Ou melhor, também não estou lá muito interessada. Mas essa é uma aproximação essencial, porque o negro que foi ao Brasil, que hoje talvez se calhar já não seja negro, devido a miscegenação, veio da África.  Então é muito importante essa relação. Há um cordão umbilical entre o Brasil e a África, e aqui não falo só de Moçambique. Eu acho que essa parceria tinha que ser para sempre. Quanto às empresas brasileiras, eu não conheço muito as atuações delas, então não vou dizer muito, mas às vezes é bom fazer essas críticas, que é para prevenir os problemas que podem vir no futuro. Ora, o Brasil é uma potência, o Brasil é forte e quando chega a um país como o nosso pode haver tendências para colonizar, pois a colonização não está restrita à Europa, é uma questão humana. O indivíduo tem tendências de suprimir o outro. E isso é algo que se tem que prevenir.

Como as novelas brasileiras chegam em Moçambique e como elas influenciam na criação de um imaginário da sociedade, principalmente dos jovens? 

Acho que vocês estão aqui há algum tempo e devem ter observado as novelas que aqui passam. O gerente da empresa, na novela, o milionário, o cientista são brancos. O carregador, o matador são pretos. Há uma mudança nos últimos tempos, não sei a partir de que ano, mas agora, por exemplo, há uma novela em que uma branca tem uma amiga mestiça. E passeiam juntas, vão a festas, vão a lugares públicos juntos. Isso não se via nas primeiras novelas que apareciam aqui. A negra ou a mulata faziam as limpezas. Era bem isso, a mulata na prostituição, nas drogas. A negra a varrer, o negro a carregar, a cozinhar, a servir. E o branco em um status muito mais alto. Há uma tendência para a mudança, há um pincelamento nas últimas novelas, mas muito pouco mesmo. Portanto, a imagem que se passa é realmente a de um Brasil branco e poderoso. Isso cria um estereótipo de um Brasil diferente. E achei muito interessante essa abertura com o Brasil que permite que nós, com muito mais facilidade do que antes, nos desloquemos até lá e nos comuniquemos com os brasileiros, porque nós conseguimos captar a imagem do verdadeiro Brasil. Antes não era possível, nós criávamos a imagem de um Brasil parecido com a Europa. Quando, afinal, as coisas não são assim.

O que você acha que é mais difícil da sociedade Moçambicana: se libertar desse colonialismo estrangeiro ou de questões ligadas à tradição, como o patriarcado?

Eu referi que havia colonialismo dos dois lados, tanto na tradição quanto no mundo europeu. O mais difícil de mudar é a mentalidade, seja ela tradicional, seja ela da supremacia ocidental. Porque tudo trata-se sempre de mentalidade. É muito difícil fazer a mudança. Até as mudanças acontecerem, ó, meu deus… eu ainda me lembro, foi, talvez, há uns dez anos: eu tinha minha vida tranquila, econômica e financeira minimamente estabilizada na altura e houve uma reunião de familia em que os mais velhos queriam tomar decisões em relação a aspectos familiares. Então estava o avô, o tio-avô e os outros tios-avôs a volta, e eles que eram os dirigentes do encontro. De acordo com as normas patriarcais, as mulheres corriam por fora, não podem entrar, porque as decisões são masculinas. Tomaram as decisões, que incluíam o pagamento de determinadas despesas, então saem os homens da reunião e chamam a todos para dizer que tem que pagar. Eu disse “não, eu não vou pagar por uma coisa que eu não sei do que se trata”. “Ah, não! Tens que pagar porque os mais velhos decidiram”. Foi quando eu comecei a perceber que ali não se tratava de imposição, mas o sistema que estava a ser usado, sistema familiar e patriarcal que não reconhecia a mulher com direito à palavra. Deu uma confusão muito grande, porque nós todas dissemos: “Ok, os homens decidiram sozinhos fazer das suas, então eles que paguem.” Pra ver o quão difícil é a mudança e isso só acontece ao longo das gerações.

Você acha que tem um papel influenciador frente à juventude moçambicana?

Eu não diria que tenho um “papel”, porque essa história de papéis está ligada às instituições. Só os indivíduos eleitos ou nomeados que podem dizer que têm o seu papel ou a minha responsabilidade. Eu faço aquilo que posso fazer. Eu dou a minha contribuição de acordo com as minhas capacidades. Voluntária, desinteressada… E a minha idade, o meu percurso me dizem que devo, de vez em quando, transmitir algum legado a alguém. É por isso que eu faço determinadas coisas. Não porque eu sinta que eu tenha um dever, um papel, uma responsabilidade. Socialmente eu não tenho responsabilidade nenhuma. Hoje eu não estou a trabalhar em instituição nenhuma, decidi ficar em casa por um tempo para escrever as coisas que me agradam, não estou ligada nem às ONGs, nem ao governo, nem à política, sou a cidadã mais independente do mundo. Portanto, não tenho papel nenhum, faço aquilo que eu posso. Pronto!

Como foi ser a primeira mulher a lançar um romance aqui em Moçambique? A senhora sofreu muito rechaço? Foi muito difícil lançar o livro?

Havia outras mulheres escritoras com seus livros… recordo-me agora de uma portuguesa, Glória de Sant’Anna, ela lançou contos; Clotilde Silva, que fazia poesia; Lilia Mompé, que fazia contos; Lina Magaia, que fazia crônicas. Então eu apareço a lancar um romance. Pra mim foi acidental, não tinha a menor ideia, nem sabia o que era isso. Fui escrevendo e a coisa ganhou volume. Publiquei. Muito longe de imaginar que estava a ser a primeira mulher a publicar um romance. Anos mais tarde, quando me aproximei disso, achei engraçado até, porque entre mim e as outras mulheres que já tinham feito suas publicações, eu não via a menor diferença. Hoje eu reconheço que, afinal, eu dei um passo especial. Agora, as lutas sempre houve, e as minhas lutas estão relacionadas com a raça e com o sexo. Vou explicar: Glória de Sant’Anna era branca, mais velha ela foi pra Portugal – não sei muito bem. Clotilde Silva era branca. Portanto, fazem parte das pessoas que tinham direito à educação. Depois surge a Lilia Mompé, que é mestiça e, portanto, também faz parte das pessoas que tinham acesso à educação depois dos brancos. Depois surge a Lina Magaia, que estava ligada à revolução e vinha de um status social mais elevado que o meu. Ela era negra. A primeira negra que publicou depois das mulheres que eu mencionei foi a Lina Magaia. Depois vem eu, que vem de lugar nenhum. Quando eu chego com a minha proposta de trabalho, junto daqueles que já escreviam, acharam isso muito estranho e olharam pra mim querendo saber quem é ela e donde que ela vem.

A gente veio conversando sobre o documentário que estão fazendo sobre a senhora. Poderia comentar sobre a segunda parte do filme, que vai retratar o momento mais espiritual, em que a senhora estava doente?

Ah, eu acho que não tem nada de outro mundo. Isso é, os escritores são sempre aqueles indivíduos que buscam a evasão e a abstração. Não sei o que aconteceu comigo, porque eu estava a trabalhar. Naquele momento de maior concentração em que eu buscava essa evasão, essa abstração, a busca de uma ideia brilhante, a minha cabeça viajou (risos). Fui e não voltei (risos). Deu uma crise terrível! Porque crise mesmo tive a primeira e não se sabia exatamente o que era, depois a assistência que eu tive não foi das melhores, o diagnóstico não era claro. Depois fiquei hospitalizada durante uma semana e de lá para cá eu fiquei em tratamento. Então as explicações que podem ser dadas… Como escritora eu sei – aliás, os escritores e a maior parte dos artistas de vez em quando têm umas viagens ao desconhecido (risos) – e durante a viagem para o desconhecido eu me encontro com entidades que fazem parte de mim mesma. Eu encontro com meu pai falecido ou com meus tios ou com minha mãe. Eram pessoas que eu via e com elas convivia normalmente. O que me levou à psiquiatria foi exatamente isso: meu pai vinha e conversava comigo e eu ficava a conversar com ele animadamente e toda gente dizia: “A Paulina tá a falar sozinha”, e eu não falava sozinha, tava a falar com ele. É claro que com o tempo e com o tratamento que eu fui tendo, essas imagens, manifestações, foram se apagando. A medicina deu uma explicação ao meu estado, que é esta que estou a dar agora. A tradição dá outra explicação sobre o assunto. As religiões dão outra. Vou ser muito clara: as religiões dizem que isso é diabólico, como se meu pai fosse um diabo alguma vez – esse é o grande insulto que eles podem dar a dignidade de um ser humano. Os médicos têm lá as suas razões lógicas, pois atuam de acordo com a lógica. E a tradição é muito clara: diz que tive um momento de encontro com meus antepassados, com os espíritos deles.

A senhora acredita em alguma?

Acredito em duas, menos numa. Acredito nos médicos, naquilo que a medicina diz, porque é lógico e coerente, e acredito na minha tradição. Agora na Igreja… Deus me livre!

Este momento ajudou a senhora a produzir?

O que posso dizer é que ajudou-me a ter uma nova visão, isso sim. De acordo com aquilo que eu pude ver e o que posso dizer sobre este momento é isso. A morte não existe, existe, sim, uma mudança de mundo. Então, a partir do momento em que eu vivi aquela situação… a morte é uma mudança de mundo. Então a vida ficou mais prática e mais tranquila.

Já que a senhora acha que a morte é só uma passagem de mundo, o que acha que deve deixar aqui – se é que precisa deixar algo aqui?

(Risos) Acho que a esperança de vida em Moçambique são uns 35 anos [de fato, segundo o Banco Mundial, a expectativa de vida é de 49,5 anos (2011)], eu tenho 58 então já estou fora do prazo (risos). Estou no lucro, então acho que fiz o que pude fazer. O que eu deixo não sei. Não sei se aquilo que andei a fazer tem algum valor. Mas tenho essa preocupação de deixar alguma coisa.

Algumas pessoas aqui em Moçambique te taxam de radical. O que você acha disso?

Ah, deixa-os. (risos) As pessoas estão muito acomodadas e aceitam tudo que é dado a elas, sem questionar. Isso acontece na maior parte das academias, das instituições públicas ou privadas. As pessoas não estão habituadas a questionar. Então, quando veem alguém que questiona, dizem logo que é radical.

Fora escrever e pensar novos projetos, o que você gosta de fazer?

Sentar na minha varanda, olhar o vazio e tomar o meu copo de cerveja. (risos)

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