Texto e fotos Alass Derivas
Florência Quevedo e Rodolfo Rivero são um casal venezuelano do Povo indígena Warao, oriundos do delta do Rio Orinoco, cidade de Barrancas, a 100 km da costa venezuelana. Desde março de 2020, vivem em Porto Alegre, cidade em que permaneceram por mais tempo, depois de uma jornada de milhares de quilômetros, por diversas cidades brasileiras, após migrarem de seu país de origem. Saíram da Venezuela em janeiro de 2019 em seguida de receberem uma ligação informando que a irmã mais velha de Florência, que já havia migrado anteriormente para o Brasil, estava doente em Manaus, Amazonas. Esta notícia, somada à situação complicada que passavam (o aumento vertiginoso do preço dos alimentos, dos medicamentos) fez com que tomassem a decisão de também migrar.
“Os familiares de Florencia pagaram a passagem a nós dois para vir ao Brasil. Chegamos em Santa Helena, Venezuela, depois pegamos um carro para atravessar a fronteira e chegamos a Roraima, cidade de Pacaraima”, conta Rodolfo. Pacaraima é uma das principais portas de entrada dos imigrantes venezuelanos no Brasil. Segundo o relatório “os Warao no Brasil”, da Agência da ONU para Refugiados, estima-se que até março de 2021, 5.799 refugiados e migrantes indígenas venezuelanos estavam no Brasil. Quase 70% desse número corresponde a pessoas da etnia Warao, que estão presentes em 23 estados brasileiros.
De Pacaraima, Rodolfo e Florência chegaram a Manaus. “Uma semana depois de chegarmos, morreu sua irmã. Disse a Florência: ‘bem, e agora, morreu sua irmã e o que vamos fazer? Vamos voltar a Venezuela?’”, lembra Rodolfo. Florencia respondeu que não, que ficariam, assim como sua irmã ficou. Deste modo, Florência e Rodolfo começaram a construir, a duras penas, sua permanência aqui no Brasil. E ainda lutam por isso, em condições de insegurança financeira e de moradia.
Assim como muitos venezuelanos, indígenas e não indígenas, dormiram em barracos, na rua. Isso em janeiro de 2019. “Saímos de Manaus a um município chamado Itacoatiara. Aí dormimos seis meses, no Terminal Rodoviário. Depois reunimos a passagem para irmos para Porto Belo. Quando chegamos lá, ficamos dois meses. De lá fomos para Cuiabá, Mato Grosso. Mais seis meses dormindo aí. E agora, vamos para onde? Fomos para Rondonopólis. Voltamos a Cuiabá. E decidimos vir para Porto Alegre”. Depois de ficarem dois meses na capital do Rio Grande do Sul, decidiram voltar a Cuiabá e trazerem sua família para cá. Todos esses traslados foram viabilizadas através de ajuda de voluntários e também através da dedicação de Florência pedindo dinheiro nos semáforos. “Não quero voltar à Venezuela, com os preços muito altos. Já não vale mais o Bolívar, somente o Dólar, e nós indígenas vamos conseguir dólares como? Por isso que não quero voltar à Venezuela com minha família”, explica Florência.
Aqui em Porto Alegre, Rodolfo e Florência tem sua família reunida, mas sofrem com a falta de garantias para uma vida digna. Pagam um aluguel caro, 1200 reais por uma casa no bairro Nonoai. “É uma casa pequena, com dois quartos, um só banheiro”, descreve Rodolfo. No momento, cogitam até viver na rua por não ter condições de arcar com esse valor. “No Brasil, eu gosto de andar, conhecer, porque na Venezuela, quando eu era pequena, também sofríamos com a desterritorialização, como escutamos aqui na Assembleia dos Povos. Porém, em Porto Alegre, não temos uma casa, estamos pagando um aluguel, não temos trabalho, meus filhos saem a pedir dinheiro para pagar o aluguel. Mas está muito caro o aluguel, 1200 reais ao mês. É muito para nós, que não temos nada. Não temos nada para vender, só pedindo. Quando eu consigo um pouco de dinheiro, compro panos de prato para vender nas sinaleiras”, relata Florência. Além da incerteza dessa geração de renda sem garantias, há ainda o risco da xenofobia e da intolerância aos povos indígenas alimentada historicamente – mas com bastante intensidade na atualidade – da sociedade brasileira. “Eu estava vendendo os panos no Parcão [bairro Moinhos de Vento] e um rapaz me disse ‘não, não vende aqui os panos, tu é venezuelana, volte para Venezuela’. Assim me assusta muito, porque gritou muito comigo. Respondi que não estava pedindo, estava vendendo meus panos, que estava precisando. ‘Tu tem a tua família, eu também tenho a minha e preciso conseguir algo para comermos’, respondi. O homem estava brabo com a gente, queria sacar faca para a gente. Eu não vou mais para lá faz três semanas, tenho medo”, denuncia Florência.
Os órgãos públicos e os Warao
Segundo Mario Fuentes, da Coordenadoria dos Povos Indígenas, Imigrantes e Direitos Difusos da Prefeitura de Porto Alegre, atualmente são três núcleos familiares de indígenas Warao em Porto Alegre. Um no bairro Farrapos e dois no bairro Nonoai – sendo um deles a família de Rodolfo e Florência. Clémentine Maréchal, antropóloga do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT-UFRGS), órgão que estabeleceu os primeiros contatos com os indígenas na cidade, corrige, explicando que são quatro núcleos: dois no bairro Humaitá (Farrapos), Florencia e Rodolfo no Nonoai e mais uma família no bairro Centro. Esta última família não tem contato com a Prefeitura e, devido às violências que sofreu no processo migratório, tem receio de ter. Somando os quatro núcleos, reúnem em torno de 50 pessoas. Os indígenas acessam a Prefeitura através da Unidade Básica de Saúde ou do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social da sua região). De acordo com Mário, estas famílias foram vacinadas nos grupos prioritários como indígenas e recebem mensalmente cestas básicas e o pagamento do aluguel social no valor de 500 reais. No entanto, o valor é insuficiente para uma vida digna de Rodolfo e Florência: como já dito, o aluguel da casa em que estão é 1200 reais. Além disso, as comidas entregues nas cestas básicas são inadequadas para uma alimentação saudável dentro da cultura deste povo. “A Prefeitura daqui nos reconhece como indígenas, vieram até nós quando chegamos, mas agora não chegam mais. E Mário não veio mais, quando ligamos, ele responde que vem, mas nada mais”, lamenta Rodolfo.
Mário explica que ainda há muito em relação à sensibilização da sociedade em geral e preparação dos funcionários públicos e da rede em relação a esta população. Para isso, o Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT-UFRGS) junto com a Coordenadoria, com a Organização Internacional dos Migrantes, com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e com o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB-UFRGS) estão iniciando a organização de um curso sobre este povo. Durante a Semana dos Povos Indígenas, em abril, a Prefeitura promoveu o Webinário Povo Warao – História e Cultura, disponível no Facebook da Secretaria de Desenvolvimento Social.
Nesta terça, 10 de agosto, em decisão inédita, a Justiça Federal de Roraima determinou que a Funai e a União não podem distinguir o tratamento dado a indígenas brasileiros e estrangeiros, como ocorre com imigrantes venezuelanos. Foi dado o prazo de 90 dias para que a União e a Funai apresentem um plano de ação em relação a esta população.
“Somos iguais aos indígenas de aqui, o mesmo sangue da gente”, defende Florência. “Aqui [na Assembleia dos Povos] estas pessoas estão falando muito bem. Temos que nos organizar mais, para lutar e recuperar os territórios, para caminharmos adiante, todos os irmãos indígenas”, apela Rodolfo.
Como ajudar
Florencia e Rodolfo produzem artesanatos, que estão à venda. Veja na foto abaixo.
“Quando me verem, me ajudem comprando colares, pulseiras, brincos”, diz Florência. Também é possível fazer uma doação direta para a conta:
Rodolfo: “se podem ajudar a nós, com miçangas, ou com panos, para podermos trabalhar”.
Ou entrar em contato através do telefone para oferecer ajuda, adquirir os artesanatos.
A história de Florência e Rodolfo foi compartilhada em uma entrevista de aproximadamente 30 minutos durante a V Assembleia dos Povos, que aconteceu do dia 29 de julho ao dia 1 de agosto na Aldeia Kaingang Van Ká, Porto Alegre. Saiba mais sobre a Assembleia AQUI.