Caminhares Guarani em defesa da Aldeia Pindó Poty

Caminhares Guarani em defesa da Aldeia Pindó Poty

(Na tarde de sexta-feira (7), depois esta matéria já havia sido publicada, os Guaranis denunciaram um novo ataque à comunidade. Pessoas ainda não identificadas destruíram uma área de terra onde os indígenas haviam realizado o plantio de mudas de árvores frutíferas e nativas, e também se preparavam para construir casas. Todo material de construção foi levado pelos invasores.)

Reportagem: Alass Derivas, especial para o Nonada*
Fotos: Alass Derivas, Comissão Yvy Rupá e CIMI

Quem passou pela Avenida Otaviano José Pinto em meados de abril dificilmente percebeu o que acontecia no interior do território guarani. Atrás da cortina de mato, invasores cercaram quatro lotes, dois deles já com barracos. A área foi desmatada. Nas laterais dos lotes, mais varas estavam sendo levantadas e arames estendidos. Na quinta, 15 de abril, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foi acionado pelos guaranis e denunciou que invasores estavam promovendo um esbulho possessório na Aldeia Guarani Pindó Poty, Lami, extremo sul da cidade de Porto Alegre. Quatro dias depois, algumas pessoas solidárias ao chamado estiveram presentes na terra indígena para testemunhar o que estava acontecendo. Nenhum invasor estava presente na hora dessa visita.

Após analisar a situação, um vereador de Porto Alegre cochichou: “Isso aí se resolve com gasolina”, sugerindo, entrelinhas, a queima dos barracos. Imediatamente foi questionado sobre o pós-ato, sobre a segurança do Cacique Roberto Ramires e das sete famílias moradoras da Aldeia Pindó Poty, compostas em sua maioria por crianças e por mais velhos, que pouco se expressam em português. Silenciou. O vereador não voltou mais à aldeia. Os invasores sim.

Corpo presente na luta

Após a primeira invasão, uma intensa mobilização do povo guarani se iniciou. Desde segunda (19), começaram a chegar parentes para somar na defesa do território. Veio gente de Aldeias de Porto Alegre, Viamão, Maquiné, Rio Grande, Terra de Areia, Charqueadas e até de Santa Catarina (Canelinha, Morro Dos Cavalos). Atualmente, são mais de 100 pessoas que ocupam a flor da palmeira (a tradução de Pindó Poty), em um fluxo intenso de vindas e idas. 

“O que acontece aqui é algo extraordinário. Vir gente até do Espírito Santo. Na nossa cultura é assim, de fazer essa caminhada de um lugar para outro para apoiar. É algo que fortalece o espírito”, explica Eunice Kerexu, liderança guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos, integrante da Comissão Yvy Rupa.

Nos últimos dias, na Aldeia Pindó Poty, os círculos são comuns. Assim como o fogo no centro deles. Quatro, cinco jovens, tocando violão e cantando músicas tradicionais. Perto das entradas da Aldeia, círculos na volta da fogueira. Eram os Xondaros (guerreiros), de vigília. Círculos maiores, abaixo da figueira: reuniões das lideranças para pensar o caminho. Pode ser também um espaço de formação para os jovens. 

Nas últimas duas semanas, a ocupação da Aldeia Pindó Poty se tornou um espaço de convívio, de transmissão dos saberes ancestrais guaranis e de formação de luta para os mais jovens. Em diversos momentos os Xondaros eram convocados a integrar o círculo, onde os mais velhos compartilhavam experiências de lutas passadas e destacavam a importância de se colocar na luta pela terra para preservar a cultura guarani.

Neste registro do anoitecer da vigília do dia 30 de abril, Marcelo Nhamandu Papa, apoiado no bastão, Cacique da Aldeia de Canelinha, Santa Catarina, contou que esteve pela primeira vez em uma luta aos 13 anos. Hoje tem 34 e é uma das lideranças temporárias do movimento de resistência da aldeia Pindo Poty. Vê na sua frente jovens com aproximadamente a mesma idade que ele tinha quando começou a se envolver.

Além dessa ocupação dos territórios, os guaranis ressaltaram sempre a estratégia pacífica de luta, composta de muita reza e canto. No dia 22 de abril, realizaram o ato cultural e espiritual Teko Porã Tenondeve rã (O futuro do nosso Bem Viver), com a intenção de recepcionar os parentes que chegavam, de se fortalecerem espiritualmente e de denunciarem aos apoiadores a situação de violação da terra.

A morosidade das instituições

Os guaranis, desde o princípio do enfrentamento, entendiam como fundamental a intervenção do poder público para barrar as invasões. Acionada ainda na primeira semana do esbulho, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) lavou as mãos. Declarou que, como a área não é demarcada, não podia agir. O processo de demarcação da Aldeia Pindó Poty, , iniciado em 2012, está travado justamente por morosidade da própria FUNAI. 

O Ministério Público Federal (MPF) também foi acionado. Os procuradores de Justiça fizeram diligências até a área e flagraram os invasores em ação na segunda (26). Na tarde de quarta-feira (28), a comunidade guarani se reuniu virtualmente com o MPF, que, através da figura do procurador Jorge Irajá, se comprometeu a ingressar, até a próxima sexta (30), com pedido na Justiça para a reintegração de posse. Acontece que, simultaneamente a esta reunião, enquanto os guaranis estavam concentrados no núcleo da Aldeia, de frente para a Estrada do Varejão, os invasores cercaram e desmataram um lote maior. Isso a cem metros da invasão anterior, que estava justamente sendo denunciada naquele momento.  

Na quinta-feira (29), os guaranis se reuniram e decidiram não esperar mais, ou parte do seu território poderia ser desmatado e invadido, talvez de forma irreversível. No amanhecer do dia seguinte, às cinco da manhã, as lideranças e os Xondaros se dirigiram até a área loteada, destruíram as cercas e queimaram os barracos. Desde então, ocupam esta área, com a presença física dos Xondaros e de apoiadores (Frente Quilombola, Coletivo Alicerce, autônomos). A partir de então, foram dias de atenção e vigília.

Não se sabia do que os invasores eram capazes por também ainda não saber se estão sós. Um deles, em um primeiro flagrante, lá no dia 15 de abril, declarou ao Roberto Liebgott, do CIMI, que estava ali “guardando a área”. A invasão de terras com intenção de grilagem está se tornando cada vez mais comum no extremo sul da cidade de Porto Alegre.

A ação direta dos guaranis também surtiu efeito nos órgãos públicos. Na tarde do mesmo dia, o procurador Jorge Irajá esteve na aldeia presenciando os fatos e declarou que entraria com o pedido na Justiça de Reintegração de Posse e Interdito Proibitório e também com uma Ação Civil Pública contra a FUNAI exigindo urgência no processo de demarcação de posse. 

No entanto, a omissão da FUNAI e o ritmo burocrático do Ministério Público Federal fizeram com que os guaranis pusessem sua integridade em risco, expondo jovens e a comunidade ao enfrentamento direto com os invasores. Que, na proteção dos encantados, não aconteceu. 

Desfecho promissor de um pequeno episódio de uma luta de séculos

Enquanto esta matéria estava sendo escrita, na manhã de quinta (6), a 9ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre acatou o pedido do procurador e emitiu uma liminar determinando a reintegração de posse e concedendo 10 dias para posseiros de duas casas de invasões mais antigas, às margens desse loteamento recente, deixarem o local de forma voluntária. No despacho consta também o interdito proibitório, que torna crime a entrada de não-indígenas não autorizados no território. O documento intima a FUNAI e o IBAMA a cumprirem suas atribuições na fiscalização desta determinação. Uma grande vitória do movimento indígena, do movimento guarani na luta por esse território ancestral. A luta segue pela demarcação da área, uma garantia mais sólida do que uma liminar.

Foto do acervo pessoal de Inácio Kunkel do assentamento dos Mbyá-Guarani no Lami na década de 1980

A aldeia Pindó Poty no Lami está cada vez mais cerceada de empreendimentos comerciais. No entanto, é um território ocupado de forma mais permanente desde a década de 60, que, junto com as aldeias da Ponta do Arado, de Itapuã, Lomba do Pinheiro, Cantagalo, configuram uma pequena parte de todo o extremo sul da cidade, historicamente área de circulação do povo guarani. 

Durante os dias de vigília e ocupação da Aldeia Pindó Poty, a autodermacação foi estratégia de luta. Para isso, a necessidade de reforçar as cercas – instrumento limitador imposto pelo homem branco colonizador que infelizmente precisa se fazer presente na defesa da não destruição da terra. Mas autodemarcação é também a transferência do núcleo da aldeia para uma área sem alagamentos, construção de uma nova Opy (casa de reza), plantio de mudas frutíferas, formação dos jovens para as próximas lutas que vem. 

Humilde apoio ao caminhar

O destaque do ímpeto irresponsável do vereador no começo deste texto é quase uma metáfora aos pequenos e grandes equívocos dos juruas (não-indígenas) no apoio ao povo guarani. Acontece e é natural. A necessidade de demarcar (delimitar, cercar) terras que não deveriam ter dono foi uma demanda jurua que se impôs. Assim como a luta jurídica, na caneta. O que mais não impomos de violência no convívio, por mais solidário que sejamos? É preciso, nesta atuação, o esforço constante de se despir das expectativas que guiam nosso agir, especialmente as que construímos a partir da interação de outros referenciais brancos – grupo de apoiadores, colegas de profissão, companheiros de luta, sistema opressor. O apoio como lugar impermanente. Condição individual e coletiva guiada pela humildade da escuta: da voz ancestral dos povos que resistem e das ansiedades que pulsam em nós para colonizar. 

O povo guarani resiste há mais de 500 anos. Apesar de ser um dos povos originários mais populosos da América do Sul, sofre com a desterritorialização. Mas trazem no caminhar dos seus ancestrais – entre músicas, silêncios, fumaça de tabaco e sementes de milho – os fundamentos da Tekóa, a terra sem males, o bem viver.

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