Relato, fotos e questões do #29M em Porto Alegre (31-05-2021)

Relato, fotos e questões do #29M em Porto Alegre (31-05-2021)

Sábado, #29M, Porto Alegre, dezenas de milhares de manifestantes foram às ruas protestar contra as políticas de morte do Bolsonaro, de Mourão – dos sete mil militares que compõem o governo. A Brigada Militar estimou 30 mil pessoas no ato. Este foi um dos mais de 200 que aconteceram pelo mundo no sábado. Diferentemente do que se pode pensar e do que se divulga, o ato, grande como foi, não é um dos lados de uma polarização entre Bolsonaro x Lula ou Bolsonaro e uma esquerda única. No meio dessas 30 mil pessoas, inúmeros modos de ver a política e de ver o cenário de morte atual – causado pela Covid, pela polícia, pelos garimpeiros ou pelo aumento, a cada dia, da fome e do sufoco de muitas e muitos brasileiros. No #29M, se juntaram coletivos, movimentos sociais, autônomos, grupos de teatro, amigos, lutadores de várias nuances e outras pessoas variáveis no seu jeito de desgostar Bolsonaro. Diversos modos de entender o enfrentamento, de praticar a ocupação das ruas, de se organizar. É imprescindível observarmos com atenção estas diferenças, essa composição e seguirmos construindo com responsabilidade uma oposição não só ao governo Bolsonaro (porque uma hora ele cai ou sai), mas ao militarismo, ao colonialismo, à violência de Estado. Ao neoliberalismo, que, independente se com Bolsonaro ou Lula, seguirá. Seguirá com os militares, com os latifundiários, com as empresas multinacionais (Coca-Cola, Bayer, Monsanto, Nestlé, McDonalds, Vale do Rio Doce, Carrefour, etc), com o mercado financeiro (os bancos que tanto nos suicidam devagarinho com seus juros), com os anônimos traficantes de alta classe, com o fascismo, com o pentecostalismo (o evangelho na mão de mafiosos).

Neste relato, tendo como base um álbum com mais de 130 fotos do ato de Porto Alegre, trago alguns elementos do que vi para tentar contribuir nessa construção. Este conteúdo faz parte de uma cobertura colaborativa dos atos de #29M com atuação de coletivos de mídia alternativa de diversos locais do país.

#29M – Fora Bozo – Porto Alegre (29-05-2021) Foto Alass Derivas

Multidão mascarada da Prefeitura à Orla

Nas redes, articulado através de um perfil chamado “Povo nas Ruas – Fora Bolsonaro”, após assembleias pelas cidades e convocatórias públicas com quase duas semanas de antecedência, o ato deste sábado reuniu quinhentos mil pessoas em mais de 200 cidades de 14 países, segundo informações da própria organização. Em Porto Alegre, concentrações diversas foram marcadas para o começo da tarde em vários pontos, faculdades, bares, bairros, sedes de coletivos. Perto das 15h, as marchas se dirigiram para se unir na Prefeitura, sede atual do Prefeito Sebastião Melo (MDB), aliado de Bolsonaro na cidade, defensor do Kit Covid, perseguidor da população em situação de rua através das ações de higienização da Guarda Municipal, entre outros ataques que se alinham ao presidente.

Às 15h, hora marcada, milhares de pessoas já se reuniam no Paço Municipal, escoando para o Largo Glênio Peres e subindo a Borges até a Esquina Democrática, na tentativa de tentar manter certo distanciamento. Era um grande ato já antes da partida em caminhada. como há anos Porto Alegre não via,

Aglomeração mascarada

Muito se questionou sobre o risco de ir ao protesto devido à contaminação pelo Covid e o quanto se aglomerar com a iminente terceira onda seria se igualar aos manifestos de apoio ao Bolsonaro, onde aglomerar é lei e ser descuidado é pré-requisito. Do #29M, em Porto Alegre, o que se vê pelas fotos são a presença quase total de manifestantes mascarados, com o uso de máscaras PFF2. Registrei pouquíssimas exceções de pessoas fumando ou bebendo em grupo, lapsos de responsabilidade que existem, infelizmente, em todo o lugar. Mas certo é que não havia uma permissividade coletiva ou um estímulo ao descuido.

Muitos registros que trago expõem pessoas sem máscaras. Trabalhadores, transeuntes que passavam pelo centro da cidade e que registrei propositalmente. São pessoas que, talvez, não cientes dos riscos ou, alvos de tantos descuidos sociais, já desolados, conscientes ou não, desleixam da própria vida. Estas pessoas que não usam máscara de qualidade ou, por diversos motivos, não se importam com o uso correto, estão expostas cotidianamente ao vírus e quem sem importa? De comentaristas de internet a jornais, quem questiona as aglomerações que estas pessoas estão sujeitas cotidianamente para servir à sociedade, para sobreviver?

No começo da Pandemia, as empresas do transporte público diminuiriam os horários para reduzir prejuízos e evitar que as pessoas circulassem. Os comércios reabriram, o fluxo de pessoas aumentou e muitos horários não voltaram. Os lucros das empresas se reestabeleceram, portanto, enquanto trabalhadores e trabalhadoras são condenadas a ônibus abarrotados, sem limitações de pessoas e com pouquíssimos horários. Quem que transfere a energia gasta em questionar uma aglomeração emergencial, consciente, arriscada sim, como o ato de sábado, para pressionar as empresas de transporte público sobre a aglomeração de quem vive na periferia ou na região metropolitana?

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Artistas na Rua

Meu primeiro encontro com o protesto, foi na Avenida Borges de Medeiros com a Rua Jacinto Gomes. Era a concentração que vinha da Faculdade de Educação da UFRGS cruzando o viaduto e rumando em direção à Prefeitura. Muita gente, um ato por si só! Na frente deste grande bloco, uma intervenção teatral encenava profissionais da saúde carregando sacos pretos, carregando gente morta. Logo em seguida, a faixa “Artistas na rua – Fora Bolsonaro”. Na esquina da Borges com a Avenida Salgado Filho, ponto de intenso fluxo de pessoas, os artistas se detiveram por um tempo, deitando os corpos no chão. A performance foi uma ação coletiva de artistas, com presença de integrantes do “Oi nóis aqui Traveiz” e de outros grupos teatrais da cidade.

Durante todo o ato, se via os corpos sendo carregados ou às vezes alguém em uma esquina segurando o saco preto, em silêncio, estático enquanto a multidão passava. A presença da morte nas esquinas, não muito diferente do que tem pairado nos últimos meses em todas as esquinas. Sentimento, fantasma, clima que alguns territórios sentem por outros motivos há anos – devido à violência policial constante, por exemplo.

Semelhante a essa ação, a de um homem isolado, que não registrei, mas vi nas redes e tocou forte: também vestido com roupa de isolamento sanitário, carregava em um carrinho a encenação de um corpo ensacado. Colado no morto um cartaz: “Eu trouxe meu pai. Ele havia votado em você, Bolsonaro”.

Ainda vale o destaque da presença da Cambada de Teatro Levanta Favela, com seus tambores e sua trupe. A relação do cifrão do dinheiro, no terno azul, com o estandarte do genocídio.

O caminho até a Orla no alto do carro de som

Da Prefeitura, a manifestação subiu a Borges e dobrou na Rua Riachuelo, em direção à Usina do Gasômetro. Tomou quase todo o um quilometro e meio de extensão desse trajeto nesta estreita rua, onde o apoio das janelas dos prédios foi notável. Foram muitos minutos até que as últimas pessoas saíssem lá na Praça do Aeromóvel. Tomando a Avenida Mauá, o carro de som parou perto da rótula onde inicia a Avenida Loureiro da Silva. Ali foram mais de 40 minutos de fala, de ato parado, enquanto o por do sol começava a se anunciar na beira do Lago Guaíba. No andar de baixo, na Orla, nos quiosques e passeando, inúmeras pessoas bebiam e confraternizavam ao som de Djs e cantores, a maioria sem máscara e em grupos; lanchas estacionadas, passeios de um sábado de sol. O som que vinha do carro de som da manifestação nem chegava a competir com o clima de descontração da área de lazer. Avalie você mesmo através do vídeo abaixo.

Quarenta minutos de fala e bandeiras tremulantes de manifestantes para manifestantes. E olhe lá. Neste ponto, muita gente dispersou. Algumas foram apreciar o por do sol, outras se retiraram. Questionamento sincero: quem escuta de verdade as mensagens em sequência, aos gritos, muitos discursos com palavras que se repetem ou que fazem parte de um roteiro prévio? Quem escuta? A quem serve o carro de som? Por que subir a cima do povo, amplificando sua voz?

Era um ato múltiplo, composto por antifascistas, feministas, torcidas organizadas, coletivos políticos, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos, anarquistas, pessoas autônomas. Diversos entendimentos do modo de agir, ocupar as ruas e de entender o enfrentamento. Muitas bandeiras, camisetas dos mais diversos significados, desde totalmente pretas a figuras estampadas – o rosto do Lula bem presente, mas não só. Eram muitas simbologias: Che Guevara, foice e martelo, símbolo feminista, FCK NZS, estrela vermelha, punho erguido. E inúmeras pautas em cartazes: a maioria pedia pelo Fora Bolsonaro, por vacina, emprego e auxílio emergencial. Mas também denúncias dos crimes ao Meio Ambiente por Patte de Ricardo Salles, do sucateamento da saúde, contra a violência policial e a violência contra a mulher. Contra o genocídio indígena. Além das mulheres indígenas, vale destacar a presença capoeirística no ato, ao som dos berimbaus e a presença da Frente Quilombola.

Fogo no fascista”

Após o momento parado na Orla, a Marcha seguiu em caminhada, com menos gente, mas ainda com dezenas de milhares de pessoas, até o Largo Zumbi, onde chegou já à noite. Trancou a Avenida Loureiro da Silva com a José do Patrocínio por quase uma hora. A maioria dos coletivos e pessoas dispersou no Largo Zumbi dos Palmares. Ainda na rua, em frente à faixa “Fora genocidas! Exigimos Vacina e Vida Digna”, da Campanha de Luta por Vida Digna, um boneco simulando o presidente foi incendiado aos gritos de “queima, genocida!”, “lutar, criar, poder popular”.

Usando das chamas remanescentes, alguns manifestantes seguiram alimentando o fogo com galhos de árvores e papeis encontrados no lixo, na tentativa tímida e meio desajustada de uma fogueira no asfalto. A Brigada Militar interviu pela liberação da rua, contando com o apoio de alguns manifestantes que serviram de linha auxiliar da repressão. Um jovem que manipulava malabares de fogo na esquina e resistia em sair da via, foi ameaçado de detenção por “incêndio criminoso”. Com a mobilização das pessoas na volta, a Brigada Militar desistiu de prender o manifestante.

O ato foi dispersando aos poucos. Mesmo com a situação da Pandemia, alguns grupos ficaram pelas ruas, em bares ou no espaço público do bairro Cidade Baixa, tanto se expondo ao vírus quanto dando dinheiro para empresas como a Ambev, Zaffar, Uber. Vale destacar isso porque são fatos que fazem parte das contradições éticas da nossa coletividade.

Comunismo, 2013 e para onde?

Em Recife, onde houve o caso de repressão mais significativo do sábado, com prisões e uma pessoa cega devido a um tiro de bala de borracha disparado pela Polícia Militar, um perfil informal de policiais no Instagram postou uma foto dos protestos com a descrição: “combatendo o comunismo”. Um absurdo, por óbvio, policiais usando do aparato do Estado para fins ideológicos. Mas isso é só a exposição escrachada do que sempre foi, a polícia como defensora de uma parcela da população. Muita gente despreza, debocha dessa caça aos comunistas, ao comunismo que o Bolsonaro tem pregado. Dessa típica tática fascista, a criação do inimigo interno. “Nossa bandeira jamais será vermelha”. Mas, pergunto, sinceramente, como explicar para a população em geral, com a presença de foices e martelos, de partidos comunistas, de bandeiras vermelhas, que uma manifestação como a #29M não é um protesto comunista? Como mostrar que estamos longe de ser um país comunista, que, sim, alguns gostariam disso, mas não são todos. Como dialogar sobre a importância de lutarmos contra o fascismo?

Muitas vezes essas simbologias, do Che Guevara à bandeira antifascista, são usadas de forma banalizada, sem os fundamentos do porquê. Mas como negar que ali estão?

Outro ponto importantíssimo é que em uma manifestação tão ampla as divergências são enormes. Tem gente que vê o Lula como a solução, tem gente que entende que mesmo o Lula assumindo novamente a presidência, o neoliberalismo, o colonialismo seguirão nos sufocando como acontece há gerações para uma parcela da população. Que é preciso lutar e criar coletividade, poder popular, para além de personalismo, do bem e do mal, do tirar este e colocar aquele. É preciso fundamentarmos os nossos agires, criarmos novas formas de coletividade, novas formas de ação direta nas ruas, de solidariedade e de poder popular.

Já se vê nas redes sociais críticas e questionamentos a la 2013: “protestar contra o Bolsonaro estou junto, mas pixar o que é do povo aí já não concordo. É preciso protestarmos com civilidade”. O “do povo” comentado pelo rapaz é a parede de um prédio da empresa de telefonia Oi. O que tem do povo aí? Aliás, o que é civilidade frente a um genocídio de 500 anos?

No Foro de Teresina, podcast de notícias da Revista Piauí, sexta, dia 28, ao se falar das manifestações que aconteceriam no dia seguinte, destacou-se as pautas difusas “lembrando o que acontecia em 2013”. Muita gente, inclusive pessoas que estavam no ato sábado, inclusive integrantes antifascistas de Porto Alegre, entendem que já se esgotou o debate sobre junho de 2013, relacionando, pejorativamente, de forma causal as revoltas com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Há quem fale de 2013 em Porto Alegre, por exemplo, e nem sabe o que foi o Bloco de Luta pelo Transporte Público e a Frente Autônoma.

Vendo, no #29M e no que vem por aí, indícios de vícios e riscos semelhantes ao que aconteceu em 2013, destaco o quanto é um equívoco gigantesco darmos como esgotados os aprendizados sobre a revolta popular que foram as Jornadas de Junho daquele ano. Nunca há como prever quando e como virá uma nova insurreição popular. Pode virar uma revolta anticolonial – como no Chile, na Colômbia, na Palestina, pode ser capitalizado para as eleições de 2022 ou usado para a implantação de um Estado de Exceção militar. Ninguém tem como dizer. Mas é preciso estarmos conscientes de quem somos nós, nossos coletivos, organizações nos passos dessa caminhada.

São muitas tarefas de diálogo para quem esteve no ato para com a sociedade em geral. Assim como são muitas tarefas entre nós mesmos, de estudar, se organizar, aprender com humildade de quem veio antes e lutar com disposição. Se você tem energia e tempo para isso, por favor, é hora. Isso também é usar dos seus privilégios. Estudar e lutar com humildade. Estudar a humildade. E agir. Para cairmos na real e destruirmos de uma vez por todas, do mais fundo de nós, essa história de palanque, de personalismo e de reformas. De ficar reformando o jeito que nos matam. De achar que se esgota tudo em um ato, ou com a nossa ação individual no hoje. O que que veio antes que nos forja e o que vamos contribuir nas lutas e nas relações?

O que veio antes. O que já erramos. O que já tentamos. Onde devemos experimentar, se arriscar, radicalizar. Como fundamentar nossas lutas e nossos viveres? Lutas ancestrais não encerram em um personagem. Como disse a escritora anticolonial guarani Geni Nuñez, “é Fora Bolsonaro, mas não só”, pois não falamos de uma pessoa, falamos de todo um sistema opressor que hoje é ele o representante. Mas não é o único ator e está longe de ser o último. O que desse sistema opressor colonial nos consome através das vísceras e acaba refletindo no nosso agir em atos como o de sábado e no cotidiano?

Novos atos – segue a cobertura

A jornalista Eliane Brum e outras pessoas destacaram a omissão de jornais como Globo, Estadão (aqui no sul Zero Hora), na repercussão dos atos de sábado. Uma briga contra os fatos, dada a dimensão das manifestações. Mais do mesmo. Conglomerados de mídia que se colocam, hoje, na crítica a Bolsonaro, mas não passam de articuladores dos próprios interesses. Ontem apoiaram o golpe, o de 2016 e o de 1964, o que farão amanhã? Não nos deixemos iludir. É preciso criarmos ferramentas e redes de escoamento das informações de nós para nós. Dar credibilidade e viabilizar mídias alternativas.

Este texto e álbum fazem parte da #CoberturaColaborativa puxada por diversos coletivos de mídia do país inteiro, articulação que iniciou no 13M (ato pelo fim do genocídio da população negra e pelo fim da violência policia), que seguiu no 29M e que continuará em construção. Foram postagens, fotos, vídeos, transmissões ao vivo cobrindo os atos de diversas cidades.

Sobre a próxima manifestação, há uma nova Assembleia virtual no dia 1 de junho, terça, marcada com a intenção de definir o próximo dia de mobilização. Acompanhe pelas redes do @povonasruaforabolsonaro.

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